AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (40ª POSTAGEM) [Rubens Jardim]
E repousada em ti me tenho
como um pombo no ninho.
Nem te faço de correio,
nem te arreio, és passarinho.
Passarinho, passarminho,
entre as penas do arvoredo,
Francis Hime, arvorinho,
passarinho, passaredo.
Quando tu voas, eu vôo.
Se desfaleces, te aqueço.
Ah, passarinho-do-vento,
passarinho-do-moinho,
pombo-sem-pombo-correio,
só por ser teu alimento
enfeito a casa de milho,
forro de folhas por dentro.
Por te amar, não tenho pena,
por cantar, perdi meu medo.
Que te olhando eu viro um ninho.
Tenho bem mais que mereço.
OUTONO AMEAÇADO
Março amaro, amargo março
– outono apunhalado em pleno berço –
Foi-se o encanto do amor
para os cantos de morte do mundo
A solidão vem suor,
inconvidada se infiltra em meus poros
e como um polvo me enlaça
Março amaro, amargo março
– cada noite é uma véspera perdida
– cada dia traz a morte resumida
Minhas mãos perdem os gestos no arado
sem o amor que se foi embuçado
Tento um rio que escorra um recado:
vem um poço e resseca ao meu passo.
Vontade de mudar-me para o poço,
fugitiva explodindo a sede do mundo.
Arrastão com meu pranto, meu brado.
MINHA FELICIDADE VEM DE QUANDO ESTOU SÓ
Minha felicidade vem de quando estou só
e ninguém me interrompe no poema,
essa espécie de transfusão
do sangue para a palavra,
sem qualquer estratagema.
A palavra é meu rito, minha forma
de celebrar, investir, reivindicar:
a palavra é a minha verdade,
minha pena exposta sem humilhação
à leitura do outro,
hypocrite lecteur, mon semblable.
RETRATO
Deixei em vagos espelhos
a face múltipla e vária,
mas a que ninguém conhece
essa é a face necessária.
Escuto quando me falam,
de alma longe e rosto liso,
e os lábios vão sustentando
indiferente sorriso.
A força heróica do sonho
me empurra a distantes mares,
e estou sempre navegando
por caminhos singulares.
Inquiri o mundo, as nuvens
o que existe e não existe,
mas, por detrás das mudanças,
permaneço a mesma, e triste.
O SANGUE NA VEIA
XXV
Escrevo; logo, sinto, logo, vivo,
e tiro-lhe ao viver a indisciplina
que o espraiaria, que o dispersaria,
e dou-lhe a minha forma comedida,
a que tem o tamanho de um amor
que eu guardo, que não gasto, não disperso;
amor que se concentra em dura pérola,
não pétala, não isto que é um excesso,
pois que pode voar; o que me fica
de tudo o que acontece e não se altera,
de tudo o que acontece e me escraviza,
e do que escravizando me liberta.
Escrevo; logo, sou quem se domina,
e quem avança numa descoberta.
XXII
Eu caio em ti como uma bruta pedra
na água, no amor não me dissolvo, o amor
não me absolve, estou (quem nos governa,
quem nos arrasta à guerra ou ao repouso)
colada a quê, um copo sobre a mesa,
menos que o copo, o fundo desse copo,
e, não obstante, para sempre presa,
pois o que basta é tudo o que não posso,
pois o que basta é tudo o que me exige
uma violentação do que, por dentro,
é o meu mundo, essa coisa indefinível
e tão concreta, mas que não conheço,
Viver é submeter-se, eu me submeto.
vestida de renda
tirana me ronda
eu não me rendo
finjo-me estátua
ela passa e desatenta
carrega outro
fim do primeiro ato
ROMANCE
há que haver algum frisson
susto arrepio
pois ficar só por costume
igual o poste da esquina
é muito triste
vai amor
melhor assim
procura um olho d’água
uma fagulha um rastilho
algo que te arrebate
devolve-te à vertigem
AOS BONZINHOS
não sou como o sândalo
não perfumo o machado que me fere
faço escândalo e o machado
que se ferre
DISPARIDADES
um furacão entre as pernas
no coração a nevasca – o sexo no equador
a alma lá no alasca
MAIS UMA VEZ
Amor na casualidade
do texto, como o cristal craquelado
não extingue a letra trêmula
o pranto desalentado.
Nas muitas camadas do vidro
colocaram o ciúme como
cor, cortado pelo meio
com lâminas de sangue.
Mas o remédio não tinha bula
e sem saber o conteúdo
bebemos todo o restante.
Esquecendo o cansaço
começamos outra vez.
NO ELEVADOR
Neon em reflexo de estrelas.
Cristal em céu costurado
de espelhos.
Um quadrado maior que o Universo.
O elevador parou entre
o quinto e o sexto andares
sem computador, nem ampulhetas.
Num instante,
centenas, milhares de anos.
O espaço cósmico em branco.
Um homem, uma mulher,
como no início do início.
ARRITMADO CORAÇÃO
Um anel de filigrana tão fino
que flutuasse em volta de si mesmo
como uma nuvem de pétalas.
Um silêncio tão deserto que num
grande palco destilasse sonhos.
Linhas esticadas, exaustas de tensão
mantendo a Vida e a Terra.
Tudo é o Nada, o indizível.
Arritmado,
só o coração.
ÚLTIMA VONTADE
“Enquanto eu estiver viva, faça-me
a única vontade, deixa-me ouvir minhas músicas
preferidas, no meu canto solitário, minhas margaridas repousantes, tão amigas, e as violetas em festa.
O meu cavalete encoberto de poeira e saudades, deixem ao meu lado, terei tempo e ainda sobra de fazer
mais um quadro, réplica de mim mesma, alegre
e sempre viva, de esperanças e anseios, escondendo
o que ficar feio, num sentimento de entrega
de uma alma ainda alerta.
Mesmo que o meu corpo esteja gasto e não mais
responda às suas mãos, faça-me a vontade,
a última, beija-me então.”
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