Brincadeira de criança, como
é bom!
AUERBACH, Patricia. O lenço.
Ilustrações da autora. São Paulo, Brinque-Book, 2013. 32p.
Qualquer objeto pode ser
brinquedo! O importante é viver o faz-de-conta com toda intensidade. E ainda
aproveitar para transformar a coisa assim, num estalar de dedos! Sem muita
explicação.
A menina pega,
sorrateiramente, um lenço vermelho na gaveta do toucador (ou penteadeira, como
preferirem!) da mãe, enquanto esta provavelmente se arruma para sair. Depois
que fica sozinha, a menina começa a testar o lenço, leva-o ao rosto, deita ao
seu lado, se cobre com ele. Aí, ela tem uma ideia e começa a transformá-lo:
primeiro em uma corda (ou uma longa trança?), depois em um véu, depois em
barriga, bebê, cachorro, tipoia, vela de barco, cabana, monstro, manto de rei,
vestido de festa, quando a mãe volta e surpreende a mocinha...
Este é um livro de imagens,
bem do jeito que as crianças (e muitos adultos também!) gostam. O leitor tem
espaço e liberdade para comandar o olhar e seguir as ilustrações no seu
ritmo pessoal. Perceber uma coisa aqui, outra ali, virar a página e se
surpreender com o rumo que a história toma. Voltar e prestar atenção no que
havia ignorado. Modificar sua impressão. Reformular a história na sua cabeça. A
leitura da imagem é sempre um jogo, como bem se pode perceber. E muito
prazeroso, se cada leitor tiver autonomia para protagonizar a sua leitura.
O que prevalece na obra é o
uso do branco em contraste com o lenço vermelho de bolinhas brancas e o imenso
domínio do fundo branco. Os desenhos feitos com lápis de grafite grosso (ou
carvão, ou giz de cera, ou lápis de cor...) são quase realistas, mas conservam
uma incompletude que deixa espaço para o leitor criar também. E trazem junto
com isso, uma simplicidade tocante, um olhar bem ajustado ao foco de visão da
criança, inclusive na relação de proporção entre a menina e os objetos que a
circundam.
Há no encaminhamento da
história uma relação quase piedosa em relação à menina: ao mesmo tempo em que
se pode pensar em abandono (temporário, claro) dessa menina que fica sozinha e
brinca sozinha, há também a constatação latente: “ela vai sair e não vai me
levar”! Mas a ligeira tristeza e a aparente solidão vão sendo gradativamente
transformadas na brincadeira com o lenço, que ao ser manipulado, vai se
revelando outra coisa.
Dá pra acompanhar claramente
a mutação dos sentimentos da protagonista: o abandono que vira aborrecimento
que vira tristeza que vira vergonha (traduzida na vontade de se esconder) que
vira ideia que vira brincadeira que se transforma em tantas coisas, até a
surpresa e o flagrante final. E aqui talvez resida a maior esperança da
história: chamar atenção para a necessidade de atenção (a redundância é proposital,
caro leitor!). Para as possibilidades do faz-de-conta, para a saída criativa
das situações de ausência com as quais as crianças têm que lidar, muitas vezes.
Com isso também aparece outra questão: as crianças usam muitos artifícios para
denunciarem sua sensação de abandono.
Diz a capa do livro que ele
é recomendado para crianças a partir de 2 anos. Mas há adultos que não “sabem”
ler imagens! Que se atrapalham, diante de tanta possibilidade, que passam
rápido por informações visuais essenciais, porque não treinaram o olhar para
isso, porque ignoram os ganchos oferecidos e as lacunas que terão que
preencher. Já as crianças, que são perspicazes nisso, com o passar do tempo (e
a falta de exercício) vão destreinando o olhar, o que é uma lástima! É preciso
alfabetizar também o olhar, que fique dito!
Por isso, vamos esperar
sempre que a luz metálica do vermelho do título do livro seja também um sinal
de alerta para questões tão cruciais na formação e manutenção do leitor. Saídas
criativas são sempre bem-vindas, como por exemplo, experimentar ler esse mesmo
livro de traz para frente! Poderemos descobrir que ao invés de pegar o lenço na
gaveta (como acontece no início da história) ela termina guardando-o, o que
muda tudo de lugar, evidentemente!
Mas que delícia que é brincar também assim
desse jeito, refazendo tudo, com nova ordem!
Patrícia Auerbach acaba de
ganhar com outro livro desse gênero “(O jornal”, da mesma editora) o prêmio de
melhor livro de imagem, da Fundação Nacional do livro Infantil e Juvenil
(FNLIJ), para obras editadas no ano passado. Bom sinal! Ótimo sinal!
Celso Sisto
é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá
(RJ), ator, arte-educador, crítico de literatura infantil e juvenil,
especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Literatura Brasileira pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da
Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de
histórias espalhados pelo país.
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