A infância e a adolescência
são parte do território sagrado em que a literatura inglesa está encastelada.
Basta lembrar as fantasias que envolvem Peter Pan (James Barrie) e Alice no
País das Maravilhas (Lewis Carrol). Ou a assustadora crueldade facilmente
encontrável em romances como Oliver Twist (Charles Dickens), O Senhor das
Moscas (William Golding) e Reparação (Ian McEwan). São incontáveis os livros
que relatam questões relacionadas com a iniciação amorosa e sexual.
Normalmente, esses Bildungromans (Romances de Formação) englobam desde algumas
das narrativas escritas por Jane Austen até textos contemporâneos como O Mar e
Luz Antiga (John Banville), Por Acaso (Ali Smith), A Biblioteca da Piscina
(Allan Hollinghurst). A descoberta do mundo, com suas mentiras e decepções,
está descrita em romances de primeira qualidade como Uma Escola para a Vida
(Muriel Sparks), Império do Sol (J. G. Ballard), Dentes Brancos (Zadie Smith),
Bem−vindo ao Clube (Jonathan Coe), Não me Abandone Jamais (Kazuo Ishiguro) e O
Dom de Gabriel (Hanif Kureish).
Na Grã−Bretanha, David
Mitchel (ainda) não é considerado um escritor do primeiro time − apesar de ter
publicado um romance emblemático, Cloud Atlas, ganhador, entre outros prêmios,
do British Book Awards Best Literary Fiction, de 2003. No mesmo ano, Mitchel
foi eleito pela revista Granta um dos melhores escritores jovens da Inglaterra.
Mas quem disse que o mundo
precisa fazer sentido?, pergunta Jason Taylor, 13 anos, narrador e personagem
principal de Menino de Lugar Nenhum, romance finalista do Man Booker Prize, de
2006. Ninguém – poderia ser uma boa resposta. Mas, provavelmente não é o
suficiente. Falta, no mínimo, uma pequena dose de humor. Afinal, como disse um
especialista em romances de entretenimento, o estadunidense Tom Clancy, Você
sabe qual é a diferença entre a ficção e a realidade? A ficção precisa ter
sentido. E isso significa que os frutos da imaginação precisam estar mais
próximos do real (seja lá o que isso for) do que o real. Na modernidade, onde
muitos conceitos são fluídos, voláteis, poucos conseguem administrar essa
contradição, esse sofisma, esse impasse. Talvez porque o enigma não admite
solução, talvez porque existe solução.
A história que Jason conta
para o leitor é uma forma de defesa contra as ofensas da vida. E elas, as
ofensas, são muitas. Algumas são fantasmas – espectros que adquirem existência
quando a mente, na falta de melhor coisa para fazer, resolve enlouquecer.
Outras são autênticas, palpáveis, capazes de machucar − como a separação dos
pais. Há aquelas fáceis de entender − como a turma de valentões do colégio.
Também existem as incompreensíveis − como a Guerra pelo controle das ilhas
Falklands (Malvinas), lugar para onde alguns jovens ingleses são enviados para
morrer.
Depois de uma série de
infortúnios e algumas alegrias, Jason acumulou inúmeras cicatrizes. E o
propósito da sua narrativa está no estabelecer esse andamento, esse
desconforto. Ao mesmo tempo, ele quer retratar − com honestidade, com
sensibilidade − a geração que sobreviveu ao deplorável espetáculo protagonizado
por Margareth Thatcher, a mulher que quebrou a espinha do Estado inglês e abriu
as portas do Império para o capitalismo selvagem.
Evidentemente, a senhora
primeiro−ministro não levou em consideração as necessidades da população − que
precisou sobreviver a um dos maiores índices de desemprego da história inglesa
recente. A economia é a guerra por outros meios, deve ter sussurrado algum
burocrata inepto. Ou melhor, Os fins justificam os meios, como recomenda o
manual dos políticos eternamente "interessados" no bem−estar do povo.
Com uma prosa finamente
elaborada, mistura de humor com ingenuidade, crueldade com lirismo, David
Mitchel conseguiu, através da voz de Jason Taylor, produzir um romance de
qualidade – que talvez possa ser resumido no axioma elaborado pelo menino de
quase 14 anos: O mundo é um diretor de colégio que pune nossos erros.
Raul
J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008),
publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no
Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional,
segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias
como se fossem uvas”.
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