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LIGETI, QUANDO A VANGUARDA DESCOBRIU A MÚSICA AFRICANA

György Ligeti (1923-2006) integra o panteão da música ocidental do século 20 - Foto: Alexander Rüsche/dpa/picture-alliance
Ligeti, quando a vanguarda descobriu a música africana

Folclore, eletroacústica, polifonia medieval, fractais: as influências do compositor austro-húngaro que faria 100 anos não têm fim. Atestado de qualidade: duas obras de György Ligeti foram "roubadas" para o filme "2001".

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Há diversos termos para designar as obras de concerto ocidentais compostas a partir da segunda metade do século 20: música nova, de vanguarda, contemporânea. Nome à parte, ela costuma ter fama de complexa demais, puramente cerebral, pouco acessível. Acima de tudo, nada que seduza os ouvidos ou faça balançar o corpo acompanhando o ritmo. Mas se essa for uma regra (e não é!), ela tem exceções.

György Ligeti nasceu em 28 de maio de 1923, em Diciosânmartin (hoje Târnăveni), na região da Transilvânia, na Romênia, de uma família judaica húngara. Durante a Segunda Guerra Mundial, integrava uma brigada de trabalhos forçados quando o resto da família foi enviado para campos de concentração nazistas. Só a mãe sobreviveu, seu pai e irmão foram assassinados.

Tendo começado a estudar música aos 18 anos, Ligeti completou seus estudos em Budapeste. Em 1956, na sequência do fracassado levante popular contra as forças ocupadoras soviéticas, escapou para o Ocidente. Após aportar em Viena, passou três anos na alemã Colônia.

Decidido a romper com os dogmas da música – não só clássicos, mas também os da então considerada "verdadeira" vanguarda – ele começara a desenvolver um estilo próprio, combinando influências folclóricas com dissonâncias saborosas, rupturas dramáticas, recursos da música eletroacústica e uma técnica de filigrana rítmico-harmônica, inspirada na polifonia medieval, que denominou "micropolifonia".

Partitura gráfica de "Artikulation", uma das duas obras eletroacústicas de Ligeti - Foto: Gutenberg-Museum Mainz

A música "roubada" de 2001, uma odisseia no espaço

Em 1961, a peça orquestral Atmosphères, com suas estruturas hipnoticamente fluidas, quase impressionistas, serviu para Ligeti como cartão de entrada definitivo na vanguarda musical do Ocidente.

A partir daí, seu nome passa a ser mencionado no mesmo fôlego com os dos já estabelecidos Pierre Boulez, Luciano Berio ou Karlheinz Stockhausen, alguns dos gigantes que dominarão a história da música erudita na segunda metade do século 20.

Numa sequência de obras sedutoramente revolucionárias, em 1966 o compositor húngaro publicou Lux aeterna, na qual, sobre as sílabas do texto latino da missa para os mortos, o coro misto a capela se metamorfoseia em massas sonoras iridiscentes e superfícies quase eletrônicas.

Pouco depois, o cineasta Stanley Kubrick escutou ambas as obras, gostou e as incluiu em seu épico de ficção científica 2001, uma odisseia no espaço, de 1968 – sem antes pedir permissão ou esclarecer de quem eram os direitos autorais.

Lukas Ligeti (2º da esq.), filho de György, toca com o Burkina Electric há 16 anos - Foto: Markus Sepperer

Quem conta o que se seguiu é o percussionista e compositor Lukas Ligeti, filho de György, em sua estada na Alemanha para o Moers Festival: "Um dia, meu pai foi assistir a esse filme que todo mundo dizia que era tão bom. Quando escutou a música, claro que ficou sem fala e chocado."

Após a sessão, uma senhora comentou que a única coisa de que gostara era a música (a trilha sonora de 2001 também inclui, aliás, a valsa Danúbio Azul, de Johann Strauss II, e a icônica introdução do poema sinfônico Also sprach Zarathustra, de Richard Strauss). Quando Ligeti agradeceu, comentando que a música era sua, a velha dama o despachou: "Sim, meu rapaz, é claro."

O compositor processou o diretor americano pelo "roubo", mas o caso acabou sendo resolvido extrajudicialmente. Kubrick voltaria a usar música de Ligeti em O iluminado (1980) e em sua obra final, De olhos bem fechados (1999) – desta vez com permissão prévia e pagando os devidos direitos autorais.


Poema para 100 metrônomos e outras piadas

Depois de Viena, György Ligeti viveu em Berlim e nos Estados Unidos, e ensinou composição na Universidade de Música e Teatro de Hamburgo. Ao longo de sua trajetória manteve uma característica relativamente rara num "artista sério": um irresistível senso de humor iconoclasta, quase infantil.

Assim, sua única ópera, Le Grand Macabre, é uma sátira cáustica sobre o Juízo Final, cuja orquestração inclui um coro de buzinas de carro. Também impossível de levar a sério, porém surpreendentemente instigante, é seu Poème symphonique, em que 100 metrônonomos, cada um num andamento diferente, são acionados simultaneamente.

Ópera "Le Grand Macabre" é uma sátira cáustica sobre o Juízo FinalFoto: Leo La Valle/dpa/picture alliance

Até sua morte, em junho de 2006, Ligeti permaneceu um pesquisador: de matemática fractal a Alice no País das Maravilhas, nada escapava de susa curiosidade intelectual. De seus experimentos eletroacústicos, por exemplo, resultaram duas obras altamente originais, Artikulation e Glissandi. A partir da década de 80, ele se dedicou a estudar a música da África Central, em especial a do povo pigmeu Aka.

Numa época menos preocupada com "apropriações culturais" indébitas, essa influência se manifesta tanto no Trio para violino, trompa e piano (1982), como em alguns dos 18 Études para piano solo (1985-2001), ou nos concertos para piano (1985–88) e para violino (1989–93) e orquestra.

Não era a primeira vez que a música de concerto ocidental buscava influências, africanas, sem dúvida. Mas essas e outras obras ligetianas de maturidade são de um dinamismo exuberante, quase convidando a dançar. Mas apenas quase, pois polirritmos (superposição de dois ou mais estruturas rítmicas) e assimetrias complexas lhes conferem um elemento de imprevisibilidade.


Influências africanas de pai para filho

Lukas Ligeti conta como o György ficou fascinado ao escutar a música da República Centro-Africana: "Meu pai estava sempre à busca de polifonia. Lá ele escutou uma forma toda nova de música polifônica, que tem algumas coisas em comum com a música renascentista da Europa, mas por outro lado é executada de modo bem diferente."

O músico austro-americano de 57 anos herdou do pai o interesse por influências étnicas múltiplas, e descreve sua produção como "música intercultural experimental", incluindo também jazz e sons eletroacústicos. Um marco em sua formação um workshop de improvisação que deu em Adidjã, na Costa do Marfim, ainda jovem estudante, patrocinado pelo Instituto Goethe.

Vocalistas do Trondheim Voices apresentam improvisação sobre "Lux aeterna" no Moers Festival 2023 - Foto: Juliane Schütz

Desde então, Lukas Ligeti tem tocado com músicos de toda a África, do Egito ao Zimbábue, Uganda e Quênia. Há 16 anos mantém com dois integrantes de Burkina Faso e dois da Costa do Marfim o grupo Burkina Electric, que participa do Moers Festival 2023, realizado de 26 a 29 de maio.

Dedicado ao jazz porém aberto a música experimental, o evento na cidade renana inclui todos os anos uma seção dedicada à África. E em sua 52ª edição homenageia também o centenário de György Ligeti, com um concerto em que o coro SWR Vokalensemble interpreta Lux aeterna. Na segunda parte, os oito cantores do Trondheim Voices, da Noruega, apresentam uma improvisação inspirada nessa peça do antidogmático mestre.

O concerto de 28 de maio de 2023 do Moers Festival foi transmitido ao vivo pela DW às 22h00 (horário de Berlim, 17h00 em Brasília), em seu canal do YouTube DW Classical Music.

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Este artigo de 28/05/2023 foi editado com um aprofundamento nas numerosas influências na obra do compositor.




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Fonte; DW

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