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"KIRIKOU E A FEITICEIRA" OU A SABEDORIA QUE FAZ AMIGOS




"Kirikou e a Feiticeira" ou a sabedoria que faz amigos
Por: Alejandro Massa Varela*
(O texto original, em espanhol, pode ser lido AQUI)

O filme “Kirikou e a feiticeira” explora com inteligência e sensibilidade noções como a fé na vida, o caminho que cada pessoa é chamada a seguir na sua existência ou o significado da verdadeira sabedoria.

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Para Teta, que entende melhor do que ninguém a inteligência de meninas e meninos.

Fui ver esse filme aos 12 anos de uma forma totalmente distraída, sem esperar encontrar ensinamentos que nunca sairão da minha vida. Talvez porque os ensinamentos que autenticamente transformam o ambiente em silêncio e o inundam de sabedoria não são ensinamentos, não prescrevem como avaliar o mundo, mas provocam conhecê-lo como se fosse ele mesmo. Kirikou e a Feiticeira é uma produção franco-belga de 1998 escrita e dirigida por Michel Ocelot, com as sequências Kirikou e as Feras Selvagens (2007) e Kirikou e os Homens e Mulheres (2012). Este ambiente onde a inteligência mais livre possível tem soberania, também conta com a trilha sonora de Youssou N'Dour, que procurou recuperar a influência musical da África e do Senegal, a língua do país Wolof e instrumentos como a kora, a flauta tokoro, o balafon ou o sanza.

Para analisar do que se trata este filme, não para ensinar, mas para estar em nossa inteligência, convém rever seu argumento, alertando para a necessidade de spoilers. Estamos indo de encontro a um povo africano atemporal e sem espaço, que em alguma interpretação poderia estar em muitos mundos e vários momentos históricos.

As aventuras de Kirikou começam desde o seu nascimento, porque suas primeiras palavras foram ditas no ventre de sua mãe e ele deu à luz sozinha. Ele então sai para conhecer sua aldeia, afligido pelo domínio da poderosa bruxa Karaba e seu exército de fetiches animados, que busca causar o máximo de mal possível, aparentemente secou a fonte próxima e comeu todos os homens que foram lutar contra ela. O tio de Kirikou é o último jovem vivo e seu sobrinho sai de casa pela primeira vez para salvá-lo de sua tentativa de enfrentar a bruxa sozinho, escondendo-se em seu chapéu para aconselhá-lo. Karaba acredita que é um objeto mágico e pede para levá-lo em troca de deixar a aldeia em paz, embora ele acabe descobrindo o engano.

As ameaças da bruxa se renovam. Cheia de desprezo pelas mulheres, ela reivindica o pouco ouro que lhes resta, punindo com seus fetiches a única que se arriscou a esconder uma joia na terra de sua casa, queimando a casa diante dos olhos dos aldeões indefesos. Ela também tenta sequestrar as meninas e meninos, primeiro usando uma canoa encantada, depois através de uma árvore amaldiçoada. Vemos como o conselho de Kirikou é ignorado por causa de seu pequeno tamanho, mas seus critérios permitem que ele avise os enganos da bruxa e salve seus companheiros.

Sem entender por que a bruxa é ruim, ele não pode deixar de duvidar dela. Sua mãe pensa sim, que ela faz coisas ruins e para cada ação deve haver uma causa. Todas as pessoas acreditam que podem manipular as coisas, é por isso que Dàodé jīng de Laozi alerta:

Quem quer governar o mundo e transformá-lo, caminha para o fracasso. O mundo é um vaso espiritual que não pode ser manipulado. Quem a manipula piora, quem a tem perde.

A mãe de Kirikou aprova a curiosidade do filho como forma de enxergar além daquela ilusão de controle que nos torna maniqueístas diante de situações e de outras pessoas:

"Mãe, você sabe por que a bruxa Karaba é ruim?"
"Não sei, ela não é a única.
"É verdade, algumas das crianças que salvei não são boas para mim.
"Você tem razão, sempre tem gente que nos deseja o mal, mesmo que a gente nunca tenha feito isso com eles. Você tem que saber como a água molha e como o fogo queima.
"É preciso estar prevenido. Enfim, ela é muito mais má que os outros.
"Ou tem mais poder.

Kirikou começa seu desafio a Karaba verificando a fonte que se presume amaldiçoada. Graças ao seu pequeno tamanho, ele consegue entrar em um cano seco, descobrindo uma enorme criatura em uma caverna interna que estava bebendo a água. Com um rojão vermelho, ele explode e mata o animal, fazendo com que a água volte a fluir, embora Kirikou quase se afogue. Isso revela uma diferença entre a imprudência e a busca de soluções, que depende de estar atento à imprevisibilidade das coisas, não idealizá-las ou temê-las.

Essa confiança resoluta implica também romper com a ilusão que a própria bruxa criou sobre si mesma, deixando-se imaginar pelas pessoas. A opinião da mãe de Kirikou é que o único capaz de ajudá-lo é seu avô, o sábio que vive na montanha proibida, dentro do grande cupinzeiro, atrás da cabana de Karaba. O risco é que a bruxa proíba a passagem para qualquer pessoa, usando o vigia fetiche no alto de sua casa, que não hesita em alertar a amante a qualquer momento. Kirikou, com o ardil de se esconder na saia de sua mãe, chega o mais perto possível da montanha e entra em um túnel sob a terra, encontrando tocas onde ele tem que enfrentar uma doninha, faz amizade com alguns ratos de palmeira e consegue chegar ao outro lado da cabana de Karaba sem ser visto. Uma vez lá, ele viaja pela floresta e depois para a montanha, onde tem que enfrentar um pássaro (hoopoe) e, mais tarde, um perigoso javali.

Finalmente, ele chega ao grande cupinzeiro, onde mora seu avô. Para a mãe de Kirikou, a autoridade do sábio é precisamente suprema porque não ser autoridade. O sábio sabe porque explica as coisas como elas são; nossa inteligência quando é livre não intervém neles nem mesmo com a imaginação, não os obriga a serem diferentes por medo ou desejo e permite que eles se expliquem. É por isso que a bruxa esconde o grande cupinzeiro, porque ela precisa que as pessoas criem bobagens. Isso é o que realmente o torna forte, independentemente de a magia ser um fenômeno real ou não. Não posso deixar de me referir ao "princípio da parcimônia" do frade e filósofo Guilherme de Ockham:

— Normalmente, a explicação mais simples é a melhor.
— Não devemos postular a existência de entidades desnecessárias para explicação.
—Temos sempre que tentar explicar o desconhecido em termos do conhecido.

O avô de Kirikou é sabedoria porque aprecia infinitamente algo que, se não está perdido, nos equipara à essência do nosso próprio nascimento e da realidade a cada momento: a vontade de aprender. Nem todos os velhos são sábios, porque também há uma ilusão no que é ser um homem velho, enquanto o único fato não é outro, senão a passagem do tempo. O velho da aldeia afirma saber tudo e quando perguntado por que Karaba é ruim, ele responde: "que porque ela é uma bruxa". O único fato envolvido é que Karaba pode fazer magia. Por outro lado, um sábio autêntico não pretende ser sábio. À pergunta sobre o porquê do mal da bruxa, o avô de Kirikou relata que Karaba se tornou cruel e obteve seus poderes malignos graças a um espinho que um grupo de homens enfiou em suas costas e que a faz sofrer atrozmente. A bruxa também não come homens nem criou ou enviou a criatura que bebeu a água da fonte. Ela só deixava as pessoas julgarem que ela era temida. Um verdadeiro sábio admite o que sabe:

"Vovô, você sabe tudo?"
"Não, eu sei algumas coisas.

Ocelot insiste em seus personagens que Kirikou, ao contrário dos Karaba, não tem nenhum poder especial. Seu avô garante que controlar o mundo e a própria vida são outra coisa e coincidem. Pode-se simplesmente acordar o mundo e isso é suficiente para não precisar de mais nada:

— Às vezes fico um pouco cansado de sempre ter que lutar sozinho e me sinto um pouco pequeno e tenho um pouco de medo. Vovô, você pode me dar um amuleto contra a bruxa?
— Não. Sua força recebe a ausência de amuletos, a bruxa conhece o mundo dos amuletos e é mais fácil para ela enganar os homens que pensam que estão protegidos e não desconfiam; Por outro lado, ele não sabe o que fazer diante da verdadeira inocência e de uma inteligência sempre desperta e livre.

Os sábios reconhecem o mal-entendido, não é ruim não saber, nem querer saber mais. Essa curiosidade é a própria profundidade do que existe, sua união íntima. Parte dela está mergulhada na escuridão, mas isso não deve causar angústia ou frustração. É possível admirar o mistério.

Você faz bem em perguntar o porquê de cada resposta. Mas por que voltaríamos à criação do mundo e, com vocês, até além.

O povo Serer do Senegal tem uma noção interessante de Deus, comum à de outros povos da África. "Roog" é a realidade suprema, a fonte da vida à qual tudo retorna, o ponto de partida e fim, a origem e o fim, como em uma história, qualquer. Os praticantes da religião tradicional Serer não adoram diretamente Roog, ele não tem um local de culto porque nada e tudo é Roog, optando por adorar o Pangool, a vida nas formas da natureza e vidas humanas dos antepassados. Roog é um ser desencarnado e hermafrodita, homem e mulher, pai e mãe, antigo, avô e avó, além de sempre novo, como Kirikou era ao nascer e continua sendo seu avô que nunca parou de aprender. Essas definições não são apenas arquétipos, mas a identidade de cada um de nós em tudo o que pode ser uma experiência. A própria liberdade que é Roog me lembra outra citação de Laozi:

A bondade suprema é como a água, tudo a favorece e nada combate. Ela é guardada em lugares que o homem despreza. Seu coração é profundo, seu espírito, generoso, sua palavra, verdadeira, seu governo, justo, sua obra, perfeita, sua ação, oportuna. Não brigando com ninguém, nada lhe é censurado.

Voltando ao enredo do filme, Kirikou decide arriscar sua vida para remover o espinho das costas de Karaba, que com medo de passar pela mesma dor novamente, nunca permitiria que alguém tentasse ajudá-la. De volta ao outro lado da montanha, o pequeno herói entra na casa da bruxa pelo porão para recuperar as joias roubadas das mulheres. Quando uma cobra não consegue detê-lo, Karaba decide assassinar o próprio ladrão com sua lança envenenada e recuperar o que foi roubado. O vigia fetichista avisa que as joias foram enterradas na floresta. Sua passagem entre flores e árvores faz com que elas murchem. No entanto, Kirikou planejou um truque: no momento em que a bruxa expôs suas costas, curvando-se para desenterrar seu tesouro, ela pulou de costas para arrancar seu espinho de uma só vez com os dentes.

Karaba solta um grito de dor, libera todo o sofrimento que se recusou a ver e reviver, o grito de um nascimento para um futuro diferente. A oportunidade de mudar novamente é também a oportunidade de ser ela mesma. Kirikou, a quem a mulher prometeu recompensar em gratidão, pede que ela se case com ele, mas Karaba contesta que ele é muito jovem. Então, ele se contenta com um beijo, mas aquele toque em seus lábios, mesmo mágico, o faz crescer instantaneamente, tornando-se um adulto livre para se casar. Vestido com plantas da floresta, ele retorna com sua noiva para a aldeia, mas as pessoas relutam em reconhecê-lo. Sua mãe intervém em seu favor, admirando o quão bonito ele se tornou. No entanto, os aldeões não estão dispostos a perdoar Karaba e exigem matá-la como vingança. Inesperadamente, todos os homens desaparecidos voltam em procissão ao som dos tambores tam-tams, acompanhados pelo sábio da montanha, que explica que a mulher não os comeu, apenas os transformou em objetos obedientes, fetiches. Finalmente, mais uma vez todos reunidos e com forças renovadas, a aldeia se alegra com o retorno dos desaparecidos e Kirikou abraça sua amada Karaba.

As aventuras de Kirikou é um filme sobre o encanto da realidade, que inclui os horrores da natureza como seca, doenças, crueldade perigosa com animais e pessoas, ignorância, rancor e ciúme humano, escondendo no centro da noite e do dia a necessidade do coração de ser corações, Criar amigos, comunidade, um universo vivo de respeito mútuo entre os seres. A inteligência pura não está apenas aberta ao aprendizado, mas ajuda os outros a fazerem o mesmo. Dessa forma, ele cria amigos, pois transcende preconceitos e devolve aos relacionamentos todas as suas oportunidades. Como disse o Imam Husayn ibn Ali:

O irmão que beneficia tanto a ele como a ti, é o irmão que com a sua irmandade deseja que a vossa fraternidade perdure, o propósito da sua amizade não é destruir a vossa fraternidade. Esse alguém luta para beneficiar tanto ele quanto você; pois, caso sua amizade se complete, sua vida se tornará doce e, se diminuir, a felicidade de ambos será destruída.

A aldeia não podia perdoar Karaba porque eles não sabiam quem ele era. E Karaba não podia perdoar porque tinha esquecido o que poderia ser. Ninguém poderia ajudá-la a arrancar seu espinho, porque ela achava que ninguém iria querer ajudá-la de igual para igual. Para o teórico do cinema Gilles Ciment, a resolução do filme tem como leitura alegórica: a história de um trauma de estupro coletivo. Kirikou atinge a idade adulta e, portanto, a virilidade, uma vez que ela remove o espinho que submeteu Karaba a ser a bruxa, ou seja, redimir com sua virilidade o mal feito a ela por outros homens, a noção negativa que ela tinha das pessoas como seres sem amor. Superando as relações violentas entre os sexos, caracterizadas por uma concepção de homem autoritário, da qual essa mulher se vinga em um excesso oposto, transformando-o em um objeto, um ser escravizado, causando terror na aldeia: a reconciliação dos sexos vem de relações pacíficas.

A sabedoria em Kirikou parte da prudência. Os homens estavam orgulhosamente confiantes em enfrentar a bruxa, mas também, como contrapartida, a aldeia foi condenada por muito tempo à submissão por medo de encontrar a mulher real. Prudência não é acrescentar nada a situações, pessoas e coisas, transformando-as em fetiches que ou deformam o desejo com a imaginação, ou tentam esconder a realidade como se fosse um terrível mistério. Duas passagens do filme são opostas e complementares, a da árvore amaldiçoada, quando Kirikou avisa as meninas e meninos que pode ser perigoso, e a do pedido de casamento:

1
— Olhe para aquela árvore. Nunca tinha visto nada igual.
— Então não se aproxime. Pode ser uma armadilha de feiticeira.

2
— Não quero casar com ninguém. Bruxa ou não, nunca serei serva de alguém.
— Se você fosse minha esposa, você nunca seria minha serva.
— Isso é o que todos os homens dizem antes do casamento.
— Não sou como todos os homens.
— É verdade, pequena Kirikou.

Ser prudente é inteligência. Se não temos nada conhecido para explicar um mistério, estamos desamparados. Mas a inteligência sem realidade, sem vontade de saber, tomando o futuro como garantido, torna-se insuportável suspeita e solidão. Que algo nos é verdadeiramente mostrado implica e ajuda a superar o preconceito e o medo. Finalmente, a inteligência pode se tornar o reino da amizade autêntica e carinhosa. Isso também envolve crescer na medida dos sábios. Ser simples, não esperar que a realidade seja de forma específica, é confiar verdadeiramente nela e nos outros. Só assim a pessoa se torna toda ela mesma.

O sábio da montanha e Kirikou se assemelham ao filósofo cínico Diógenes, o cachorro. Quando Alexandre, o Grande, lhe ofereceu qualquer coisa no mundo, Diógenes só pede que ele não cubra o sol. A inteligência é suficiente, não precisa e só ela pode compartilhar infinitamente. É assim que os sábios infinitamente recebem, alcançam o sol sem possuí-lo. Como ensinou Laozi:

O simples, quando dividido, modela todas as ferramentas.


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Alejandro Massa Varela (1989) é poeta, ensaísta e dramaturgo, além de historiador de formação. Entre suas obras estão o livro O Ser Criado ou Exercícios sobre misticismo e hedonismo (Plaza y Valdés), prefaciado pelo filósofo Mauricio Beuchot, a coleção de poesia El Aroma del dardo ou Poemas para un shunga de la fantasía (Ediciones Camelot) e as peças Bastedad ou Quem veio devorar Jacó? (2015) e El cuerpo del Sol ou Diálogo para enamorar al Infierno (2018). Sua poesia foi reconhecida com vários prêmios no México, Espanha, Uruguai e Finlândia. Atualmente atua como diretor da Associação de Estudos de Revolução e Serenidade.




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Fonte: PIJAMASURF


[Tradução: Daufen Bach.]

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