Ali e Mandela, Assim Como Sísifo
O que é um ídolo ou um herói? Quais feitos ou
sacrifícios proporcionam a alguém o nome na história ou a admiração de muitos,
para que se torne um espelho, um exemplo de cidadão ou de vencedor? São as
batalhas ganhas, a abnegação surpreendente ou a coragem improvável? Diante da
lista dos “100 Maiores Brasileiros de Todos os Tempos”, promovida pela emissora
de TV SBT, fica difícil saber. Não que tal lista tenha alguma relevância ou
seus critérios sejam levados a sério, pois, afinal, pesquisas realizadas pela Internet
sobre “os melhores em qualquer coisa”, têm denunciado ao redor do mundo o
quanto as pessoas desconhecem a história – nacionais ou internacionais – e o
quanto o atual prevalece sobre o antigo ou, ainda, o quanto os fenômenos
recentes e consagrados pela fama instantânea estão em vantagem no quesito
notoriedade. Desse modo, cantores pop que nada produzem de original
ou admirável e duvidosos líderes espirituais galgam espaço e se sobressaem,
deixando para trás (ou de fora) na lista cientistas, políticos e artistas
atuantes que contribuíram para difundir ou engrandecer algum campo do
conhecimento ou gênero artístico. Serão tais controvérsias ou disparates
frutos da falta de nomes suficientemente fortes, inovadores, ousados e
solidários para agregar admiração, estima e gerar influência em torno de suas
ações, criações ou causas?
Longe de pretender uma apologia à idolatria, as
interpelações encenadas a partir de agora procuram abrir espaços para pequenas
exposições de vidas célebres que resultaram na estima de muitos e na influência
proporcionada pelas decisões e ensinamentos que as lutas que travaram
amealharam: Muhammad Ali e Nelson Mandela.
Em “O mito de Sísifo”, Albert Camus escreveu que “O
homem absurdo manda todos os ídolos se calarem quando contempla seu tormento”.
Para Camus, o tormento de Sísifo de rolar uma pedra ao topo de morro e vê-la
deslizar ad infinitum ao ponto de partida (castigo infligido por
Zeus) mostra o momento em que uma punição se torna liberdade, não pela quebra
dos grilhões, mas sim pela consciência da ação. O herói somente recebe tal
designação quando o seu sofrimento torna-se consciente, um desejo, uma missão,
assim o destino passa a lhe pertencer. Em Sísifo há a negação aos deuses e ao
trabalho realizado com devoção, porém há um devotamento de resistência, que
destitui da punição o seu solene e brutal atributo de servir de exemplo para
que os oprimidos não iniciem uma insurreição.
Ali e Mandela possuem os seus deuses e não abriram mão
deles para compor suas diretrizes de resistência. O que vincula ambos é terem
assumido o castigo como destino, conscientes inverteram o poder de seus algozes
e escreveram a igualdade e a liberdade como princípios de vida. Muhammad Ali
não se consagrou apenas por ter sido o maior pugilista de todos os tempos, mas
também por sua luta pelos direitos humanos e civis. Em Ali, encontramos um
campeão estadunidense que, em 1967, abre mão de seu nome de batismo, Cassius
Marcellus Clay Jr. (nome do amo do seu tataravô), denunciando-o como nome de
escravo, dado em homenagem a uma herança escravocrata, adotando um nome
muçulmano, Muhammad Ali (nome adequado à religião a qual se convertera em 1964,
o Islamismo). Essa atitude causa a ira dos setores conservadores da América e
gera ao boxeador inúmeras acusações de traição à pátria. Ainda em 1967, Ali se
recusa a fazer parte das fileiras de soldados que combateriam no Vietnã. Mesmo
como campeão do mundo dos pesos-pesados, Ali é declarado apto para servir ao
exército, porém ele se nega a acatar a convocação alegando ser tal gesto
incompatível com sua posição de Ministro da religião do Islã, e, ademais,
pronuncia, “Eu não tenho problema algum com os vietnamitas... Eles nunca me
chamaram de crioulo”. Ali sabia que aquela era uma guerra injusta, política e
desumana, e que sua batalha particular travava-se internamente: contra o
preconceito racial. Por confrontar o Estado, Ali é condenado a cinco anos de
prisão, uma multa de dez mil dólares e suspenso da prática do boxe. Sai da
cadeia em 1970, e retorna aos ringues; e, em 1971, depois das apelações, a
Suprema Corte Americana anula sua condenação, o que se configura como uma
vitória para Ali e para os movimentos de contestação à guerra do Vietnã. E em
1974, realiza em Kinshasa, Zaire, contra George Foreman, a maior luta de todos
os tempos (Ali nocauteou Foreman no nono round). Em 1981, Muhammad Ali se
aposenta do boxe, mas continua sua militância em defesa dos direitos humanos.
“O homem que vê o mundo aos 50 anos do mesmo modo que
ele via aos 20 anos, perdeu 30 anos de sua vida” Muhammad Ali.
Nelson Mandela passou 26 anos de sua vida encarcerado
devido às acusações de planejar ações armadas e de terrorismo na África do Sul.
De 1964 a 1990, Mandela vive entre as quatro paredes de um cubículo “alcunhado”
de cela. O jovem estudante de Direito inicia sua luta contra o Apartheid nos
anos 40, o que o leva em 1942 ao Congresso Nacional Africano (CNA). No ano de
1944, Mandela ajuda a criar a Liga Jovem do CNA. Em 1955, é um dos
articuladores da “Carta da Liberdade”, que defende o fim do regime
segregacionista perpetrado pela minoria branca. Porém, em 21 de março de 1960,
ocorre uma mudança no discurso pacífico de Mandela: nessa data, 69 ativistas
negros são mortos por policiais durante uma manifestação. Brutalidade que entra
para a história com o nome de “O Massacre de Sharpeville”. Por isso, em 1961,
Mandela assume o comando da “Lança da Nação”, o braço armado do CNA. Porém, em
1962, o líder negro é preso e condenado a cinco anos de prisão por viajar
ilegalmente ao exterior e por incentivar greve em todo o país. E, em 1964,
ocorre o duro golpe ao espírito de Mandela a condenação à prisão perpétua. No
entanto, Mandela inicia uma campanha de resistência às injustiças que lhe são
impingidas e escreve cartas, volta a estudar Direito, e prega a igualdade e a
união diante das mais diversas práticas de tortura física e psicológica que
sofre. Mandela diz, “A derrubada da opressão foi sancionada pela humanidade, e
é a maior aspiração de cada homem livre”. Por essa razão, rejeita a liberdade
condicional proposta algumas vezes, que tinha como cláusula a ordem de proferir
ao povo e aos seus aliados que encerrassem a luta pelos direitos civis,
políticos e econômicos negados aos negros na África do Sul. Em 1990, perante a
insustentabilidade interna do regime e a pressão internacional, Mandela é
libertado. No ano de 1993, Mandela e Frederik de Klerk, presidente
sul-africano, recebem o Prêmio Nobel da Paz por imporem fim à segregação racial
na África do Sul. E, finalmente, no ano seguinte, Nelson Mandela torna-se o
primeiro presidente negro da África do Sul e governa o país até 1999, tendo
como meta a união racial e o respeito aos direitos humanos e civis.
“A educação é a arma mais poderosa que você pode usar
para mudar o mundo” Nelson Mandela.
Ali e Mandela são grandes nomes da história, mas com
sentimento e emergência popular. Tornaram as ações de seus adversários e as
punições que sofreram um destino e, desse modo, quebraram o sofrimento que é
impingido para dobrar o ânimo, arrefecer as convicções e matar o desejo de
liberdade.
Deveríamos, na verdade, procurar discernir sucesso de
feitos, celebridades de ídolos, conquistas de influência. Talvez faltem as
ferramentas intelectuais que a educação proporciona e a sensibilidade que o
desejo de descoberta e arte nos confere. Mas, por outro lado, nossa pressa em
valorizar e descartar heróis é própria do consumismo contemporâneo. Talvez se
pensássemos no início de uma das músicas da roqueira Pitty, “Memórias”, “Eu fui
matando os meus heróis aos poucos/Como se já não tivesse nenhuma lição para
aprender”, não consagrássemos tanto tempo às ambições sumamente
individualistas, nem tampouco tornaríamos a estima por um ídolo consumo em vez
de lições para fazer do mundo um lugar melhor.
Wuldson Marcelo, corintiano apaixonado por literatura e cinema, nascido em 1979, em Cuiabá, que possui Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea e graduação em Filosofia (ambos pela UFMT). É revisor de textos e autor de dois livros de contos que estão entre o prelo e o limbo, “Obscuro-shi” e “Subterfúgios Urbanos”.
3 comentários
parabéns, como sempre uma bela coluna, amo seus artigos sempre brilhantes, polemicos e pontual.beijos e até o proximo.
Obrigado Milka. Fico feliz pela recepção ao texto. Espero manter a boa sequência. Abraços e beijos, minha amiga.
Parabéns pela pertinência e propriedade com que escreve seus artigos, sempre nos provocando a reflexão sobre temas cruciais. Amo lê-los.
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