Diário dos 10 dias.
14 de setembro.
Todo diário começa com a hora de acordar. Ou com a hora de dormir? Desse dia só lembro o meio. Não o meio literal. Só de alguma coisa às quatro horas da tarde que eu engoli de pé na cozinha. Uma cozinha estranha. Com uns ladrilhos azul piscina. Essa cozinha não era a minha.
15 de setembro.
Foi um dia cinza. Mas não choveu. Só vi o sol no final do dia, num canto do céu. Entre as cinzas, entre a fumaça, uma grande bola laranjada a espiar a vida de lá.
16 de setembro.
Eu dormi. Praticamente o dia todo. O calor insuportável. Um bebê chorou o dia inteiro na casa ao lado. Um cachorro ficou latindo também.
17 de setembro.
Arrumei minha mala. Joguei o resto das coisas numa mochila. Peguei tudo que era meu e algumas coisas que não eram, mas julguei por direito que poderia levar.
18 de setembro.
Esperei.
19 de setembro.
Tentei ligar várias vezes. Para vários lugares diferentes. Para todas as cidades imagináveis onde poderia estar. Ninguém tinha visto. Eu desisti na décima sexta, décima sétima ligação. Esperei.
20 de setembro.
Achei um CD perdido do Led Zeppelin. Escutei Ramble On umas 20 vezes seguidas. Eu queria sair logo, ir embora. Era inevitável. Então, esperei.
21 de setembro.
22 de setembro.
Eu passei três dias escutando aquele CD. Três dias imaginando se aquele pássaro azul era o mesmo do Bukowski. Um dia eu saberia. Eu tentei ligar, mas cortaram o telefone. Acho que logo cortarão a energia. Eu decidi esperar só mais uma semana. No final disso, se nada acontecesse, se ninguém chegasse, talvez, eu deixaria uma carta, eu falaria do pássaro azul, eu deixaria rastros.
23 de setembro.
Eu acordei cedo nesse dia. Lembro que a fumaça tinha dado uma trégua. Resolvi arrumar a casa. Era domingo. Abri as janelas de par em par. Era uma casa consideravelmente grande para uma pessoa que morava sozinha. Eu gostava daquela cortina amarela. Quem tinha uma cortina amarela? Eu deixei de lado aquele CD. Na verdade, eu o coloquei dentro da mala. Lavei a louça e até molhei as plantas. Eu colocava o telefone no ouvido e tentava ligar para escutar a moça da Cia telefônica dizer que não era possível realizar aquela chamada. Não escutei mais o bebê. Talvez tivessem viajado. Para fugir do calor infernal. Pois acabou a fumaça, mas o céu estava ímpeto e claro. O sol decidido e forte. O calor desumano. Completamente desumano. Na minha mente, impregnado feito mancha em roupa velha, estava essas três palavras: “só esse dia”. Já era insensatez minha esperar tanto tempo. A mala no canto da sala há tanto tempo. Eu decorando tudo daquela casa. Já sabia, por exemplo, que no banheiro, num cantinho da parede oposta à privada, tinha um buraquinho e que às quatro horas da manhã saia dali uma fileira de formiguinhas que iam até a cozinha a procura de comida. Eu estava observando as formigas. Mais preocupante ainda. Quase na hora do almoço, fiz uma pequena refeição com o que tinha sobrado na geladeira: dois ovos, um tomate, um pedaço de pão velho. Certifiquei-me de que não tinha nada meu em lugar nenhum. Dei uma olhada nos livros da estante, peguei um pedaço de papel e tentei me despedir. Eu desisti. Nem sei o motivo. Acho que era culpa. Mea culpa. Passou o tempo. Fechei as janelas às cinco da tarde. Estava mais silencioso do que o habitual. O mundo estava mais silencioso do que o habitual. Escutei alguém abrindo o portão. Meu estômago revirou-se. Naquele momento eu senti que talvez fosse melhor que eu não tivesse esperado. Ele entrou. Eu o olhei rapidamente antes de abaixar a cabeça e sentar no canto do sofá. Estava ainda mais magro. Os cabelos grandes e a barba por fazer. Estava entrando impetuosamente pela casa e quando me viu parou no meio da sala e respirou profundamente. Silêncio. Olhou a minha mala no chão. Abriu e pegou o CD. “Isso é meu!”. Colocou em cima de uma mesa, voltou perto da mala e gritou: “Tem mais alguma coisa minha aqui? Hein? Tem mais alguma porra minha aqui?”. Não respondi. Não levantei a cabeça. Ele seguiu pelo corredor, fazendo barulho, abrindo as portas. Eu levantei depressa, peguei as minhas coisas e caminhei até a porta. Ele voltou gritando, que não era para eu ir, que a gente tinha que conversar. Que eu não deveria estar ali. Tentou segurar meu braço. Eu o impedi e disse, calmamente, que eu tinha ficado para cuidar das plantas, que eu não sabia que ele ia demorar tanto. Que eu pensava que o pior já tinha passado. E na coragem adquirida no ato daquela conversa insensata eu lastimei tudo o que tinha feito. Cada erro, cada fuga. Mas disse que foi ele quem fugiu na hora mais importante, então, que não poderia julgar a minha permanência. Ele correu pro quarto. Eu, preocupada, fui atrás. Quando da porta vi que ele estava com o abajur na mão. Segurando ele acima da cabeça como se fosse jogá-lo em mim. Eu desisti ali. E eu tentaria mil vezes. Mas eu desisti ali. Olhei bem aquele corpo magro em roupas velhas na certeza que era a última vez. Virei, caminhei pelo corredor, abri a porta da frente, desci um lance de escada com dificuldade e quando estava passando pelo portão escutei o barulho do abajur atingindo o chão. Eu não poderia, naquele calor infernal, nem olhar para trás.
24 de setembro.
Choveu no outro canto da cidade.
Cinthia Andressa de Lima. Nasci em maio de 1988. Sou mãe de Malu, a menina mais esperta do condado. Acumulo livros, escritos, desenhos nas paredes e quadros inacabados num pequeno apartamento cheio de amor em Cuiabá. Estudante de Literatura na faculdade de Letras da UFMT, com publicação no livro “Da Ilha dos Livres” da Sociedade dos Jovens Escritores da UFMT. Também atendo no Casa 11: blog quase falido, mas muito estimado (http://www.acasa11.blogspot.com.br/) . Um dia fugirei para Jericoacoara.
Contato: cinandressa@gmail.com
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2 comentários
Meu orgulho!
Lindo conto! Sou sua fã =) Você precisa publicar logo seus livros pra eu ter todos na minha prateleira bem ao lado do Saramago, que eu sei que é sua maior inspiração!
Adorei ;D
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