LITERATURA EM PERIGO
Que futuro está reservado para a literatura no século XXI? Nenhum − se confirmadas as principais suspeitas daqueles que adoram brincar de esconde−esconde com o Apocalipse. Inclusive porque, de acordo com o calendário Maia, o mundo vai acabar daqui a alguns dias (ou meses ou anos ou séculos).
Nestes tempos em que os níveis de leitura e escrita estão em xeque (em que a Internet tem contribuído para diluir o conhecimento, em que o cinema ambiciona transformar as narrativas em entretenimento), a literatura está se equilibrando sobre o arame, correndo o risco de cair na boca do lobo. Se não conseguir desempenhar adequadamente o seu papel de "urso de circo", perderá o sentido, a direção e a utilidade. E isso quer dizer, repetindo Walter Benjamin, que É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências".
Na modernidade, o afeto foi substituído pelo individualismo e pelo narcisismo escancarado. A noção de coletivo (envolvimento político, social e cultural) está desaparecendo da prática humana. A manipulação da ética e a flexibilização da moral passaram a dar as cartas e a determinar a ordem dos blefes. A vida foi fatiada pelo capitalismo predatório, que transformou as ruínas econômicas na parte mais importante do cenário por onde se movimentam os seres humanos. Nenhum paliativo (lícito ou ilícito) está conseguindo repor as perdas – que se acentuam a cada instante.
A literatura (em especial o gênero que a define, o romance) parece não mais cumprir função social. E, portanto, está rumando para o desaparecimento, como se fosse um remake a−pós−o−moderno de Fahrenheit 451, texto escrito por Ray Bradbury, em 1953 (a versão cinematográfica é de François Truffault, 1966). Nessa narrativa clássica, os livros não mais constituem artigo de primeira necessidade. Proibidos pelo Estado, a posse constitui uma violação flagrante da ordem pública. Por isso, devem ser queimados. O contraponto a essa proposta de controle intelectual é fornecido por uma pequena comunidade rebelde, que estabelece um nicho de resistência, de resiliência, ao poder do autoritarismo. Como o texto escrito não é permitido, a memória literária, ecoando a pré−história, é preservada pela transmissão oral. Nesse momento, falar se confunde com o escrever. Recordar os textos condenados ao esquecimento é exercer a liberdade.
As 96 páginas de A literatura em perigo, escrito por Tzvetan Todorov, e publicado no Brasil em 2009, alertam para essa possibilidade assustadora: um mundo sem livros, sem histórias, sem imaginação.
Todorov, um dos nomes mais importantes da escola "formalista", em ritmo de mea culpa, ambiciona construir um tempo em que a comunicação entre a vida e a literatura seja interligada e, se possível, inesgotável. Parte dessa tarefa está atrelada a algumas mudanças no ensino em sala de aula. O esquema tradicional de estudo (que segue a evolução cronológica − escolas literárias, autores representativos − ou utiliza a literatura como escada para uma melhor compreensão das regras gramaticais) contribui para que o leitor se afaste dos livros. Terminado o uso escolar, nada restará para ser lembrado. O aluno não mais terá preocupações com algo que está desconectado com o mundo "real", pelo menos com o mundo em que ele se movimenta. O que guardará na memória são os obstáculos para conseguir a nota mínima e o autoritarismo de uma disciplina que não o consultou sobre conteúdo, linguagem e gosto pessoal. Que o ignorou quando poderia lhe ter ajudado nas dificuldades que precisou superar.
Em um mundo onde a prosa e a poesia estão excluídas da vida social, onde as formas digitais estão substituindo as físicas, os livros são inúteis. Uma tentativa de subverter esse desatre está no esforço (muitas vezes heróico, muitas vezes inútil) de tentar transformar alunos em leitores. E isso significa que precisamos colocar em sala de aula professores que gostem de ler e de ensinar literatura. Sem a formação de um público leitor, capaz de conduzir através das gerações a chama do conhecimento, a literatura não terá mais sentido ou função. Urge abrir as portas da sedução para que o prazer de ler também seja uma forma de ler o prazer. Sem medo, sem culpa.
Concluindo, no processo literário, o leitor está em primeiro lugar. Sem interlocutor, não há motivos para escrever. Infelizmente, o ensino escolar da literatura ainda não percebeu que precisa mudar, sob risco de se tornar dispensável.
Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”.
Todos os direitos autorais reservados ao autor.
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