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Coração partido [Taylane Cruz]

Coração partido

Por Taylane Cruz
Artigo publicado na Cultura Interativa

Eu era um homem em estado de encantamento. Ali sentado ao fundo, o rosto pálido iluminado pela chama de uma vela sobre a mesa. Uma taça de vinho, um borrão nos olhos. Caetana, meu amor! La loba. Meu mundo, semente do meu coração. A cada música, ela me paria. Eu dava pequenas goladas no vinho adocicado sentindo o gosto de sua boca escarnada. Ia todas as noites vê-la cantar. Quando subia ao palco, parecia digerir a humanidade num grito. Sua maquiagem era pesada, o batom vermelho como uma papoula. Cantava baladas de amor doído, mexendo-se sem precisão, criando um mundo só seu. Sua dança e canto eram uma cópula. “Me deixa copular também”, eu sussurrava na esperança de que ela, lá do palco, me ouvisse e dissesse: Vem, meu amor. Eu entraria nela com a pressa de um jovem amante. Mas Caetana era uma natureza, rio que passa, montanha. Era a terra em que meus pés criavam raízes. Uma cigana de alma decantada. Tantas noites deixei o bar chorando. Voltava no dia seguinte cheio de esperança, alguns tostões no bolso e minha pequena máquina fotográfica: Posa para mim, Caetana. Ela me ignorava. O palco era seu par.

Depois do show, eu a seguia. Levantava apressado, com meu amor nas mãos ia até ela: Toma. Caetana gargalhava, bebendo numa só golada uma taça de vinho. Tinha o riso aberto, alegre como uma flor. “O que achou da apresentação?”, perguntou, apertando-me os nós dos dedos. Puxa vida, respondi meio sem graça, a voz mais bela que já ouvi. Olhou-me com ternura, o saiote vermelho caído sobre os joelhos. Cruzava as pernas levantando a saia e deixando à mostra a carne branca de suas coxas. Quis saber meu nome, endereço, telefone. Anotei tudo num bloquinho, entreguei a ela que, segurando entre os dedos, levantou-se e foi embora.

Na noite seguinte, mais uma vez eu estava lá. “É a minha mulher”, disse cutucando um camarada que sentou junto a mim. Caetana começou a cantar. Ela era todos. Não sabia ser uma só. Tenho fome de almas, lia-se em seus olhos. Eu sentia algo entre as tripas e o estômago. Carregava um filho dentro de mim. Nosso amor, Caetana, nosso amor é isto que trago aqui. O camarada ao meu lado aborreceu-se, não entendia minha adoração por Caetana. Esperei a apresentação terminar para poder encontrá-la. “Você outra vez”, falou ao ver-me. Passei a mão entre os cabelos, desconcertado. Amava-me então. Vamos, Caetana, levo você para jantar. Ela não quis. Borrou a maquiagem com as costas da mão. Disse-me: Pode ir. Sua indiferença era um aborto meu.

Voltei para casa. A rua escura e vazia. Andei a esmo. Talvez devesse escrever para ela, pensei. Corri. Abri a porta com dificuldade, um pouco embriagado pelo vinho e pela esperança pastosa que trazia em mim. Peguei papel, caneta: “Minha doce Caetana, escrevo para…”. Eram sete da manhã quando terminei de escrever a carta. À noite, levaria até o bar, entregaria a ela.

Esperei contente como sempre ficava ao vê-la. Bebi e cantei cada canção. Ela dançava, as mãos sobre o ventre, enamorada de sua rebeldia. Seu impulso era para o amor. As artérias de seu pescoço pulsavam como um sexo excitado. Quando desceu do palco, persegui-a. Pondo a saia entre as pernas entreabertas, sentada numa cadeira enquanto tomava a fresca na porta do bar, não me olhou. Comecei a falar e estendi-lhe a carta. Parecia uma menina cujo corpo é sua manifestação exata de consciência. Os cabelos ruivos…my ginger girl. Mas Caetana parecia era uma cigana. Ergueu a cabeça lentamente, pegou a carta: “Estou sofrendo muito, vou chorar”. Fez um muxoxo. Levantou da cadeira. Fui embora. Andei satisfeito carregando a felicidade de ter uma amante como ela.

Voltei na noite seguinte. Amávamo-nos. Caetana estava especialmente linda. Usava um vestido de renda que grudava ao seu corpo como uma segunda pele, uma segunda alma. Usava seus brincos e anéis, badulaques de mulher andarilha. Era uma passagem constante. Aquela noite seria nossa. Eu trazia no bolso um anel de bronze com uma pedrinha roxa cravada. Seria o meu presente para ela. A banda encerrou, Caetana deu o seu adeus melodramático à plateia. Fui depressa ao seu encontro. Fumava recostada numa parede ao fundo do bar. Não quero assustá-la, expliquei ao ver o modo arredio como me olhou, quero apenas dar-te um presente. Ela aceitou o anel. Colocou-o no dedo anelar. Com um meio riso, ergueu a mão: É um belo anel. Senti no estômago um frisson ao ouvir aquelas palavras. Puxa vida, Caetana, fico feliz que tenha gostado! Ela olhou longe. “Sabe o que eu acho?”, perguntou, tirando o anel. Meneei a cabeça. Aproximou-se, seu hálito de canela penetrando cada poro meu: Morra! Morra! Morra! A natureza irrompeu de dentro dela. Furiosa, gritava, os perdigotos na minha cara pálida. Ofendi-a como nunca.

Deixou-me ali e desapareceu. Chorei por doze horas. À noite, pus meu terno, o sapato de camurça, o gel no cabelo. Fui vê-la cantar. Tal qual o fogo, ela criava. Sofri a cada música. Esperei o show acabar. Como na noite passada, tudo que me disse foi: Morra! Morra! Morra!

Entendi, depois de quinhentas noites indo vê-la cantar, que tudo que Caetana podia me dar era uma personagem. Tentei esfaqueá-la na porta do bar na quingentésima noite. As mãos suando, a perna tremendo: vou matá-la como se mata um animal. Sem piedade. Uma facada no peito, outra no pescoço, outra no ventre. Vou matá-la com frieza, depois vou-me embora dormir em paz. Todo homem merece um sono bom. Ergui a faca que reluziu no ar, refletindo a cor púrpura dos cabelos de Caetana. Não a matei. Escondi a faca afiada no paletó e fui para casa ver televisão. Caetana não podia morrer. Não aceitaria a morte, pois ela era uma vida. Era várias.

Caetana era uma obra de arte. Irretocável.

2 comentários

Antonio Augusto disse...



Fico feliz que não tenha ''matado Caetana'' porque descobriria ao mundo que Caetana sempre foi sua, de mais ninguém. É difícil ao autor matar um personagem, principalmente sendo tão belo e sedutor. Caetana vive cantando dentro de cada um de nós ! Parabéns ! Você teve a coragem de não matar Caetana !

Café Espacial disse...

Oi pessoal. Só pra corrigir, o artigo não foi publicado na Café Espacial, não, tá? :)
Beijos,