Na Mitologia Grega, Atropos ou Átropos (do grego Άτροπος,
"Sem Retorno") era uma das três Moiras, deusas que regiam os
destinos, sendo sua contraparte romana conhecida como Morta. Era considerada a
mais velhas das Moiras, conhecida como a "Inevitável" ou
"Inflexível" sendo ela que cortava o fio da vida. Seus atributos eram
o quadrante solar, as balança e a tesoura ou ainda uma esfera e um livro onde
ela lia os destinos.
À espera de Átropos
O sangue queimava as paredes das veias corroendo
feito um ácido e ele sentia prazer nisso. Olhou pro relógio no visor de seu
celular: eram duas e vinte da madrugada. Sentado à beira da cama de seu quarto,
observava, paralisado, o sangue que escorria. À sua direita, uma lâmina nova e
um copo de conhaque quase vazio. Uma confusão de ideias em sua mente; pensava
em sua mãe, na irmã mais velha, no balconista da farmácia, Otávio (iria se
lembrar dele?), na primeira professora do jardim, no seu chefe (maldito fosse
ele), Sr. José, o zelador, Márcia, Augusto, Zé Pereira, o Alemão. Desejou saber
se alguém iria ao seu enterro. Quem escolheria o traje para que seu corpo
permanecesse a sete palmos da terra? Pousariam moedas em seus olhos? Devia ter
deixado uma carta com instruções...
O lençol incorporava o vermelho, fio por fio
lentamente. Observava os desenhos assimétricos compostos pela borra, cada vez
maior, mais úmida e quente. O colchão, provavelmente iriam jogar fora (quem não
se importaria em dormir nele, transar sobre as manchas?). A consciência começou
a falhar, as imagens iam ficando embaralhadas e teve a sensação de ouvir vozes,
sussurrando em todo o quarto, num eco estridente. O braço esquerdo começou a
arder, sentia as artérias e vasos inchados conversando com ele, implorando pra
explodirem de uma única vez. Ainda sentado, olhou atentamente, como se fosse
pela última vez, cada objeto que compunha o quarto. Cada qual o fazia viajar
pelas lembranças e por um tempo que ele não queria ter vivido. Lembrou que não
tinha escrito nenhuma carta, afinal, iria dar explicações a quem? Quantas
vezes, em estágios depressivos e angustiantes piores do que aquele? Quantas
vezes, mentalmente, arquitetou planos de fuga, mudanças de identidade, de
profissão, tudo para fugir daquela nuvem espessa e obtusa de depressão que
constantemente o acompanhava. Quantas vezes? A coragem era seu fraco, sabia que
jamais prosseguiria o que arquitetava em sua mente. Inspirou o ar profundamente
e imaginou Átropos cortando o fio daquela sua vida medíocre, inútil e vazia.
Divagou por um instante imaginando-a esvoaçante pelo quarto vestindo um longo
de musselina azul clara, cabelos longos, olhos brilhantes e saltados, segurando
os últimos centímetros do fio de sua vida antes de cortá-lo com uma enorme
tesoura dourada.
O corpo fraquejava, sentia-se já sem vida, sem
conseguir manter fixo o pensamento em alguma ideia, lembrança ou mesmo
despedida daquele mundo enfermo. Esfaleceu, de costas sobre o leito. Sentiu uma
grande dor em toda a extensão esquerda de seu corpo. Fervia por dentro e por
fora: corpo, mente e espírito. Aquele silêncio o irritava, sentiu vontade de
gritar, urrar, xingar tudo o que lhe viesse à mente, mas sabia que o melhor era
permanecer mudo. Observou o teto, o quarto, os móveis delineados somente à meia
luz do abajur, pois odiava a plena escuridão, desde criança, e por um instante
refletiu que teria que se acostumar com ela de agora em diante. Não acreditava
em reencarnação, ressurreição, volta como ser inferior e toda essa conversa
fiada que os homens inventaram sobre o que existiria do outro lado em um tal
deus que tudo observava, pois se assim fosse, não o teria trazido a esse mundo
pra ter aquela vida de merda. Cria: não havia nada do outro lado. A
morte era o fim de tudo, escuridão plena e ponto final. E como a sua vida
chegara a um ponto final, não haveria porque não adiantar o ciclo. Há tempos
pensava em dar um fim em sua angústia, sua tristeza repentina por tantas vezes
sacudida por uma força que vinha sabe-se lá de onde. Sua revolta com a condição
humana de muitas sociedades, a antítese da democracia social inexistente nas
atitudes. Todas aquelas dores que sentia há anos e jamais encontrara respostas
para elas. Há anos aquele momento permeava sua mente. Não admitia a depressão,
não tinha tempo pra sermões e conselhos médicos e livros de como se reerguer em
dez lições. Sabia-as de cor e salteado, do avesso e de traz pra frente. Queria
seguir as suas regras, o seu modo de viver sem se arrepender. Tentou
levantar-se, apoiando-se no cotovelo direito, mas percebeu que sua pressão
arterial já começava a dar os primeiros sinais de queda brusca, bungee
jumping sem volta. Implorou por Átropos, mais uma vez e ouviu o som
de vários trovões brigando lá fora.
A janela estava com meia cortina, os vidros
fechados, Percebia o clarão dos faróis dos automóveis que passavam na rua,
àquela hora da madrugada. Os sábados eram sempre tumultuados. Baladas, festas,
bêbados invadindo casas em seus possantes; vidas sem limite, sem noção de
espaço; gritos, tiros e risadas desordenadas. E quais eram os seus limites?
Suas noções de espaço real, concreto e polidamente social? A vida era uma única
regra: siga as regras. Passou muitos anos à margem delas, pois tinha um acordo
selado com sangue com seu amigo Alfredo, amigo de infância esfaqueado no
pescoço, dentro do carro, numa sinaleira, ano passado. O acordo era seguir a
ideia de “viver sem se arrepender do que fez”. Agora o braço e seu corpo
começavam a formigar. Estava muito frio no quarto.
O frio aumentava, tentou virar seu seu corpo em
posição fetal; puxou o lençol e cobriu o pouco de seu corpo. O lençol, ensopado
de sangue, era fúnebre. Muito fraco e tremendo, esticou o braço direito sobre o
criado mudo e pegou a garrafa de conhaque. Ainda havia alguns goles. Seu estômago
deu um estampido oco quando a bebida desceu goela abaixo. Quando abriu os
olhos, a imagem que vira o deixou mais perturbado e, por consequência de sua
fraqueza, não conseguiu se mover, se afastar do que via. Ele imóvel e ela
estava lá, esvoaçando sobre seu corpo, sorrindo sarcasticamente e seus enormes
fios de cabelos bailando no ar. Átropos enfim viera buscá-lo, exatamente como
ele sonhava desde a mais remota infância. Ele sorriu. Sorriu uma felicidade que
talvez nunca tivesse sentido, mas ela estava lá e finalmente viera buscá-lo.
O vidro da janela começou a receber os fortes
pingos de uma tempestade anunciada por toda a madrugada, mas a meteorologia
previa sol no final do dia.
Maria de Fátima Venutti ou simplesmente Fátima Venutti. Paulistana de Osasco. Reside
em Blumenau desde dezembro de 2002. Formada em Letras, escreve desde os 11
anos. Pág. na internet: Fátima Venutti.
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