Estou em Heathrow, aeroporto de Londres. Estou sozinha e forte e livre.
E como sempre, quando sinto tantas coisas, apavorada. Mas o medo mudou.
Trago uma nova vida pra mim mesmo que isso não possa ser explicado de forma simplificada em um parágrafo perdido no meio de um texto com tantas coisas saltitantes para serem ditas.
Estou muito sem vírgulas e penso ser uma boa hora para o remédio. Caetano canta It’s a long way no Iphone. Tenho uma mala maior do que meu apartamento para despachar. Ainda tenho uma neurose quase maior do que meu pequeno e magro corpo para sustentar.
Tenho sensações desconexas e intensas num coração sufocado pela nova pashmina que acabei de adquirir. Passo mal na fila do tax free e desisto.
Dane-se deixar quase mil libras pra rainha. Dizem que ela está precisando porque até quarto do castelo pras Olimpíadas está alugando.
Na verdade sofro, queria esse dinheiro, preciso dele, preciso de muitas coisas sempre e o tempo todo e isso cansa, mas hoje não. Hoje chega.
Tomo meio Rivotril e meio Dramin. Tenho muito, muito, muito medo de voar. O Rivotril dissolve embaixo da língua e meus medos começam a ter vírgulas. O oxigênio enquadrando minha intensidade em partes mais decifráveis e lentas.
O corredor que leva pra dentro do avião sempre me lembra os judeus indo para “o banho”.
Sento na minha cadeira classe economica confort class, acomodo minha mala de mão embaixo de meu assento. Deixo o mais perto que posso a nécessaire com mais remédios, caso eu precise. Daqui a quinze minutos, quando as portas se fecharem e o aviso de atar cintos e blábláblá...tomarei mais meio Rivotril. E então, quando o serviço de bordo começar, e os sucos e comidas e blábláblá...comerei pouco e beberei algo não muito doce e nem muito azedo e me cobrirei e tomarei mais meio Dramin.
E então, com a quantia exata do que eu preciso, fracionada nas quatro partes descritas anteriormente, eu dormirei como um anjo doente. Isso tudo acontece. E essa é a vidinha controlada e temerosa e quadradinha que me conforta e ao mesmo tempo me faz estar sempre prestes a rasgar minha pele, amassar, jogar no lixo e começar de novo.
Eu não fui feita pra ela. Pra essa vidinha, pra esses medos, pra essa caipirice. Sou sempre acordada, roubada, convidada, carregada a ter emoções. E então, minutos antes de fechar os olhos, eu o vejo.
Ele chega atrás de dois seguranças de sobretudo preto. É uma figura cabisbaixa, soterrada por um chapéu “sou um famoso popstar e nem ligo pra isso”. Sem dizer nada e apenas tentando achar espaço para guardar de forma não amarrotada a sua jaqueta de verão, ele me causa aquele meio segundo de prolapso no coração. Um vazio de esperança na boca do peito. Aquele meio segundo de prolapso na batida cardíaca da uretra. Eu tomei remédio suficiente pra não sentir nem o ar entrando pelo meu nariz mas, de repente, o mundo todo começa a girar quente e acelerado no meio das minhas pernas.
Com o olhar sério e todos os músculos bem relaxados, ele me percebe e sorri entregue. Do alto de algum palacete que só se desenha na atmosfera que o embala, ele sorri como alguém simples num ponto de ônibus. Porque estou drogada sorrio de volta, mesmo sabendo que isso não tem nada a ver com o fato de eu estar drogada. Ele é um homem para o qual eu sorriria em qualquer situação. Cochicha algo para um dos seus seguranças. O segurança maior olha pra mim inquisidor, analisando com seus precisos e distantes olhos se eu não sou uma russa mafiosa assassina infiltrada naquele voo para seduzir o principe e mata-lo enforcado com minha cinta-liga.
Ele se aproxima de mim e fala algo em francês. Seu queixo é grosseiro mas seu lábio é fino como o de uma garotinha que usa batom de morango. Algo sobre a letra do meu assento. G ou D?
Ele está nitidamente puxando algum papo idiota. Porque estou drogada, apenas respondo “Are you Kurt Cobain and I’m dead?”. Ele se senta ao meu lado. Me explica que odeia viajar ao lado de homens. Porque estou drogada e porque, agora de perto, percebo como ele é realmente lindo e cheira bem, respondo que estava mesmo precisando de alguém forte para me ajudar a rasgar o plastiquinho do fone de ouvido.
“Cucubem?” Eu respondo que sim, tudo bem, eu estou bem.
Ele insiste: “cucubem?”. Eu respondo que, na verdade, mais ou menos, eu tenho um pouco de medo de avião.
Ele ri, com suas covinhas aristocráticas e olhos azuis recheados de um ironismo soberano, e explica pela terceira e última vez “I’m not Cucubem”.
Ele quer dizer Kurt Cobain. Mas do seu biquinho francês só sai “cucubem”.
Se eu não estivesse com meus cintos atados e minha mente viajando numa prancha alada pelos mares do Hawai, tiraria agora mesmo o primeiro botão de sua camisa com meus grandes e tortos dentes frontais.
Mas “frontais” só me lembra que, caso o Rivotril não funcione, ainda tenho o Frontal. Definitivamente eu não era um ser sexuado naquele momento. Ou talvez estivesse voltando a ser. Eu estava voltando a ser.
Depois de falarmos sobre o ar condicionado exagerado, as opções bregas de filmes disponíveis, o quão nojento estava o arroz, os nossos livros preferidos, a diferença entre paulistanos e cariocas, a incrível oferta de empregos no Brasil em comparação à Itália e Espanha, começo a dar defeito. Durmo entre as frases, esqueço palavras, bocejo entre os olhares sexys.
Confesso pra ele, finalmente: estou completamente pra lá de Bagdá. Completamente. Tomei uma dose cavalar pra uma mocinha de 49 quilos.
E estou fazendo um esforço sobre humano pra te dar atenção. Preciso dormir. Agora. Nesse segundo. No segundo anterior a esse segundo. Mas, se você se interessou por mim assim, abatida e débil, não sabe como posso ser incrível e bonita se me der a honra de um café na Vila Madalena amanhã, fim da tarde. Eu inclusive pago a conta também para seus seguranças. Agora, por favor, só me deixe morrer por dez horas.
Dividimos então um cobertor incrível que ele trouxe da ala nobre do avião. As luzes se apagam. Ele me oferece seu ombro. Eu aceito. O fundo musical começa. “Don’t worry, about a thing, cause every little thing gonna be all right...”. Bob Marley sempre canta no fundo da minha cabeça quando os remédios batem no fundo da minha cabeça. Eu vou apagar em cinco, quatro, três, dois...
É quando ele começa a massagear a minha coxa com seus dedos compridos e magros. Como disse anteriormente, eu não fui feita pra ela. Pra essa vidinha, pra esses medos, pra essa caipirice. Por que fui tomar remédios? Por quê? Tomei a vacina pra cobra antes de desejar tão fortemente levar a picada. E então, algo ainda mais forte do que o maior de todos os medos e o maior de todos os efeitos soníferos de todas as tarjas pretas prescritas pra toda a ansiedade mundial, desperta em meu corpo após meses de fidelidade com a minha tristeza. A minha libido.
Sim, eu estou viva. Vem gigante, pura, atropelando qualquer outro sentimento, sem mágoas, como se eu fosse uma adolescente sonhadora sentindo o toque de uma mão invasiva pela primeira vez. Esqueço minhas dores e sou invadida por ondas quentes como se os deuses soprassem que tudo bem, eu posso ser feliz de novo. Ainda que pouco e idiotamente. Ainda que drogada e perto do céu. Ainda que de forma errada e triste. E seu beicinho que antes insistia no “cucubem” agora insiste em achar o céu da minha boca. Em morder minha nunca, em lamber meus dedos.
Eu e o francês desconhecido, que tem dois seguranças que a essa altura dormem na classe executiva enquanto ele, que é o “famoso não sei quem”, se aperta comigo na classe econômica, no escuro gelado e sombrio da British Airways, nos atracamos entre cobertores, fones de ouvidos e almofadas descartáveis. Percorremos os trechos de peles possíveis em meio a pudores, roupas, frios, aeromoças passando e espaços limitados para locomoções e explorações.
Ele então olha bem fundo nos meus olhos, faz um carinho no meu cabelo, e diz, como uma pobre criança rica e desesperada “você não sabe como tudo isso é lindo pra mim”.
Ele continua: “você não sabe quem eu sou, você não se importa com quem eu sou... e você é normal, você é tão normal, você é uma menina comum e isso é so amazing and so cute”.
Veja querido menino perfeito, normal tá bem longe de ser o que sou.
Se tivéssemos mais tempo além dessas horas de voo, você saberia o quão louca e chata e ciumenta e birrenta e neurótica e ansiosa posso ser.
Explico isso pra ele, que me pede então uma qualidade.
“Me diga sua qualidade, garota linda”. E eu digo que, apesar de ser tão errada, ainda sou a pessoa mais legal do mundo. E ele ri. E se levanta para ir ao banheiro. “Venha, eu sei que o espaço é pequeno, mas eu estarei dentro de você”. No segundo em que ele se levanta, seus dois seguranças se levantam também, e o aguardam do lado de fora da cabine.
Só então, vendo aquela cena, percebendo que nem mijar sem ter dois brutamontes cuidando dele o coitado pode, eu entendo que “garota normal” significa ser “plebéia”. Ou significa ser uma “bonitinha engraçadinha do avião”. Sua vida deve ser recheada de talheres de ouros, modelos internacionais e festas com gente que não tem nada a dizer já que gastou tanto dinheiro para apenas parecer.
Quando ele volta do banheiro, eu já estou dormindo. E assim permaneço pelas próximas dez horas de voo. Não mais porque minha vontade de sumir é maior do que minha vontade de sentir, mas apenas porque a aventura já havia sido vivida. Mais do que aquilo, seria perguntar sobre sua identidade secreta e estragar o momento. Ou transar na cabininha apertada do avião e, certamente, estragar o momento. Eu não fui feita pra transar com estranhos em cabininhas de avião, apesar disso parecer divertido. Sou romântica e preferi ficar com a imagem dele afastando meu cabelo da testa e me dizendo como era lindo eu ser uma garota que estava ali pelo mistério da vida e não pelo seu sobrenome misterioso.
Durante a madrugada, ele ainda insistiu um pouco, falando bem rouco no meu ouvido, ora em espanhol, ora em italiano, ora em inglês, ora em francês: “vamos comigo dar uma volta, eu tenho um esquema na primeira classe, deixa eu fazer isso com você, deixa eu fazer aquilo com você...”. Nunca uma língua tentou me chupar em tantas línguas. Mas eu apenas tocava seu ombro, sem sequer abrir os olhos, sem despertar de meus sonhos apagados, e dizia com uma maturidade fria e inglesa que nem eu sabia que tinha “quem sabe uma outra vez, darling”.
Fotógrafos, jornalistas, um carro que mais parecia funerário e mais quatro seguranças o esperavam no desembarque. Antes de sumir pra sempre e ser engolido pelo seu universo tão distante e diferente do meu, ele me jogou um beijo no ar e me prometeu uma ligação que, eu sei, jamais acontecerá. “Adeus menina normal”. Eu entendi que ele queria dizer “adeus menina diferente”. Se onze das dez anjinhas da Victoria’s Secret não tinham negado fluidos a ele, quem era essa garota qualquer que tinha preferido conversar sobre livros e dormir de mãos dadas?
Só mais tarde, com a ajuda do Google, eu descobri com quem eu havia dormido na fileira 34. E descobri quão maluco tinha sido dizer “não” para um homem que certamente não conhecia essa palavra. Mas, para mim, eu havia dito sim. Sim para achar graça em tudo novamente. Sim para trocar meus remédios e minhas fobias e minhas tristezas por mais uma de minhas histórias tão divertidas.
E eu sinto muito se você chegou até aqui querendo saber o nome de meu nobre e breve amante francês. Só posso dizer que minha vida é incrível e que, por isso e por tudo, eu estou de volta.
Eu e minha libido desembarcamos novamente nesse mundo.
Felizes e curiosas.
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