O boom do ego
Tenho restrições a argumentos estatísticos quando o assunto é literatura. A principal é que se usa um critério quantitativo para avaliar o que tem outra natureza: um único grande escritor é mais importante para a sua época do que duzentos contemporâneos sem talento. Quando falamos de estética, e não de sociologia ou história, a representatividade de um conjunto pode residir menos em raça, classe, gênero e local de nascimento do que em idiossincrasia pessoal e acaso. Machado de Assis era negro. Lima Barreto era filho de um ex-escravo. Oswald de Andrade era de família rica. Clarice Lispector nasceu na Ucrânia.
Isso não quer dizer que levantamentos assim sejam desinteressantes, pelo contrário. Num ensaio publicado na Folha de São Paulo, o crítico e escritor Luís Augusto Fischer comparou gerações de autores nacionais a partir da leitura de três coletâneas: Os cem melhores contos brasileiros do século (Objetiva, org. de Italo Morriconi), Geração 90 (Boitempo, org. de Nelson de Oliveira) e a edição Os melhores jovens escritores brasileiros da revista Granta (Alfaguara). Parte das conclusões vem ao encontro do que se percebe de uns anos para cá: a maior prevalência da ficção urbana, feita tanto por homens quanto mulheres, com personagens de classe média ou alta e cenários não necessariamente locais.
Fischer identifica também uma tendência aos narradores em primeira pessoa e à chamada autoficção, com tramas que aproveitam fatos biográficos e, como decorrência, personagens que gravitam em torno do meio literário. Também é fato: a era das celebridades favorece o interesse pela vida privada, e a literatura confessional é uma resposta à demanda; poucas gerações são tão egocêntricas quanto as mais recentes, e isso se reflete em obras que giram em torno dos respectivos umbigos; é mais fácil sentar no ar-condicionado e criar histórias sobre editores, tradutores, jornalistas e bacharéis das letras ― o que a maioria de nós somos ― do que sair à rua para pesquisar universos alheios.
Mas o principal impulso para o fenômeno, e aí eu daria ênfase a algo que Fischer cita apenas de passagem, foi tecnológico. Impossível desconsiderar o impacto da Internet quando se comparam as últimas duas ou três décadas: de uma cultura quase toda visual, imersa na linguagem do cinema e da TV, foi-se para um tempo em que se gasta o dia lendo e escrevendo. Uma prática com desdobramentos não apenas na ficção, mas na cultura que a cerca. Se nos 1980 havia videomakers demais no mundo, e nos 1990 começou a febre dos designers, profissões para onde escoava uma massa de indecisos de temperamento vagamente artístico, nos 2000 tivemos uma espécie de boom dos escritores. Que acompanhou outras novidades, em paralelo ou numa relação de causa e efeito: ferramentas de autopublicação, barateamento dos custos do livro impresso, florescimento de oficinas, festas literárias, prêmios, rapapés e oba-oba em geral, sem contar os maiores índices de escolarização e a consolidação de campanhas oficiais de estímulo à leitura.
Como não acontecia havia décadas, a figura do autor voltou a ter certo status. Alguém de 14 anos e com gosto por romances russos, digamos, o que antes era atalho seguro para uma adolescência classicamente viscosa e solitária, hoje pode se iludir que está cumprindo etapas do calvário que terminará em consagração, processo narrado em sua página lida e discutida por outras almas românticas na cidade, no país e no mundo. É natural que essa idealização apareça em forma ficcional, e daí tanto a constância dos protagonistas literatos quanto o risco do esteticismo autorreferente.
Fischer situa o fenômeno, também, numa espécie de ambivalência histórica: “Duas linhas se mostram. Uma convergente: a economia brasileira de fato se volta para fora, como um ‘global player’, e a nova geração se afina com isso. Outra divergente: a nação segue chafurdada em mazelas (…) e a nova geração parece passar ao largo disso.” Faz sentido, mas continuo achando que a internet é um responsável mais direto pelo individualismo: a experiência contemporânea espelha o modo de existir e interagir na rede. Um meio onde todos são estimulados a dizer o que pensam e narrar o que vivem, e onde a aparência geral é a de diversidade de ideias, mas o que há na maioria das vezes são monólogos que confirmam opiniões cristalizadas.
Num cenário assim, o próprio conceito de engajamento talvez tenha sido deslocado. Uma semana acompanhando as redes sociais é o suficiente para se empanturrar das palavras de ordem do momento, sejam elas sobre costumes ou realidade nacional. Seguir militando em tais esferas por meio da ficção perdeu parte de seu alcance e sentido: é redundante girar em torno de temas já tão repisados. O que dizer num romance sobre o mensalão, digamos, depois de meses de cobertura massiva? E como encontrar estímulo para o que em geral acaba sendo uma pregação para convertidos?
O compromisso da literatura, se é que existe algum, mantém-se em domínios menos acessíveis: a busca por uma voz particular, uma visão de mundo que não se confunde com nenhuma outra. Não é proibido um panorama social ser traçado por meio da paisagem íntima, mas o movimento é de dentro para fora, e não o contrário. Ao menos nisso o tempo atual ajuda: na democracia, é mais fácil para um escritor dizer o que precisa ser dito sem se prender a limites ideológicos, restrições de classe, repressão política ou preceitos morais. Cabe a ele cultivar essa liberdade, condição individual para a relevância em termos coletivos.
Michel Laub nasceu em Porto Alegre, em 1973. É autor de cinco romances, todos publicados pela Companhia das Letras. O mais recente, Diário da queda, foi lançado em março de 2011. Ele contribui para o blog com uma coluna mensal.
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