O QUE MAIS DESEJO
Delicadeza não se escreve com palavras, ideogramas, imagens, gestos ou intenções. Para encontrar a delicadeza cabe misturar os sentimentos com a doçura, se esquivar da grosseria, tanger a suavidade, trocar a crueldade pela poesia.
O diretor de cinema japonês Hirozaku Kore−Eda conseguiu vislumbrar a delicadeza duas vezes. A primeira foi com o belíssimo Ninguém pode saber (Dare mo shiranai, prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes de 2004). Sete anos depois, O Que Eu Mais Desejo (Kiseki, 2011) se mostra igualmente tocante e belo.
No Japão ocidentalizado, o menino Koichi Osako, 12 anos, sonha com o dia em que a sua família estará reunida outra vez. O pai e a mãe se separaram. Os filhos foram repartidos. Koichi mora com a mãe e os avós em Kagoshima, ao sul da ilha de Kyushu. O irmão mais novo, Ryu, mora com o pai, em Fukuoka, ao norte da mesma ilha.
Um dia, na escola, Koichi ouve alguns amigos falando que quando dois trens balas se cruzam ocorre um instante mágico. Os pedidos feitos nesse local, nesse instante, são atendidos.
Koichi imagina que deve tentar salvar a união familiar. Com a ajuda de dois amigos, elabora um plano. Quer ir ao cruzamento ferroviário e pedir que os pais se reconciliem. Como esse lugar fica longe, quase na metade da distancia da cidade em que o pai e o irmão estão morando, começa a juntar dinheiro para pagar as passagens e a comida.
Simultaneamente, os irmãos estão em contato permanente e gostam de ouvir a voz um do outro ao telefone. Então, combinam se encontrar no cruzamento ferroviário para estabelecer o início de um tempo em que todos estarão juntos outra vez.
Koichi e Ryu são diferentes, incrivelmente diferentes. Koichi é introspectivo, ligeiramente melancólico, educadíssimo. Suas ações são elaboradas, cheias de detalhes. Ryu é alegre, expansivo e prático. Costuma usar o tom imperativo ao falar. Quando o pai (que é músico) chega do trabalho, completamente bêbado, o menino lhe explica (com frases simples, diretas) que precisa de dinheiro para viajar, para encontrar o irmão. E não deixa espaço para a negação. Nesse momento, o espectador percebe – sem nenhuma dúvida − qual dos dois é o adulto.
O encontro das sete crianças (os dois amigos de Koichi, os três amigos de Ryu) está escorado em motivos diferentes. Com exceção das duas meninas (ser atriz, desenhar melhor), os motivos que os levam a essa aventura não parecem ter utilidade. Mas, obviamente, não é isso o que importa. Há valores muito maiores em jogo.
Na hora exata em que os trens bala passam, Koichi fica calado. Aflito, percebe que não deve interferir no destino. O que mais deseja não pode se realizar. Não adianta ter os pais juntos se eles continuarem brigando, se continuarem agindo como crianças. A decepção é irmã siamesa do amadurecimento emocional.
Ryu também não pede pela reconciliação familiar. Para o irmão menor, há questões mais significativas do que pedir pela restauração de um tempo que não existe mais. Estar junto do irmão mais velho, mesmo que seja apenas por um dia, lhe parece mais racional. Somos irmãos. Estamos ligados por um fio invisível, diz.
A presença das crianças no cruzamento ferroviário, semelhante a uma fábula, festeja a fantasia. Provavelmente, algum tempo depois, haverá outros encontros similares. Também haverá expansão da ternura e do afeto.
A amizade, em algumas circunstâncias, deve ser entendida como uma benção – delicada como a infância.
Hirozaku Kore−Eda, diretor de O Que Eu mais Desejo (2011) e Ninguém Precisa saber (2004)
Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”.
Todos os direitos autorais reservados ao autor.
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