Sponsor

AD BANNER

Últimas Postagens

Por causa de duas letras DECIDIDO, O TURCO NÃO CEDEU [Lêda Selma]

 Por causa de duas letras 
                                  
   DECIDIDO, O TURCO NÃO CEDEU

Um vexame dos maiores, sem dúvida. E, até hoje, contado e requenntado pelos moradores de Riacho Raso, município tacanho, mas hospitaleiro, adotado, há vários anos, pelo libanês Assad Abom Rachid,  conhecido como “cunhado turco”, ou, mais comumente, “gunhado” e também pela fama de bisbilhoteiro.  Dono de boa parte do comércio local, o mais famoso, a quiberia, tinha o hábito de chamar os amigos de “gunhado” (“turco” que se preze troca o c pelo g e o p pelo b), um jeito de se tornar um pouco parente deles, e afastar, assim, a saudade da pátria e da família tão distantes.

Empolgado com a ideia – importada de um município vizinho – de dar nova aparência à quiberia, escolheu com muito capricho e inspiração um majestoso letreiro para a fachada do estabelecimento: BEM-VINDOS À QUIBERIA DO CUNHADO. No maior entusiasmo, foi atrás do pintor Nego Bebão, papa na especialidade, alcoólatra quase de nascença e trovador por vocação. Sem se surpreender, encontrou-o dando rasteira em cobra. Todavia, por ser o “Da Vinci” local, ignorou-lhe a ebriedade e decidiu contratar-lhe os serviços: 
– “Gunhado”  Nego Bebão, breciso de seus bréstimos  bara  colocar na fachada central de minha guiberia um sugestivo letreiro. Mas, antes, guero o garo amigo gurado dessa bebedeira.
           
  – Não sou queijo pra ficar curado
 nem nordestino pra viver na seca.
 E só deixo de comer água,
 quando o turco, de pular a cerca.

Assad, tomado de espanto por sentir-se apanhado em flagrante (era afamado como paquerador nato) desistiu da conversa: “melhor deixar bra debois”. No outro dia, mal bocejou a manhã, já estava à porta do pintor para retomar o assunto interrompido. Passou-lhe os dizeres e a promessa de uma cavalar talagada de cachaça, “debois do serbiço bronto”.

Livre do porre, Nego Bebão, carregando seu arsenal de trabalho, dirigiu-se ligeiro ao estabelecimento do turco, aflito por começar a pintura. Escolheu as tintas, montou a escada, empunhou pincel, esquadro e iniciou a tarefa, rapidez de um buscapé.

Perto do meio-dia, já sedento de aguardente e arrependido da “malfazeja combinação”, viu o turco aproximar-se e, esperto, tentou rescindir o trato que lhe foi impingido pelo contratante, exigindo-lhe uma golada de pinga:
           
  – Não aceito essa lei seca
  nem por mais, sequer, um instante;
  água dura aumenta o pique
  de quem dela é precisante.

– Binga? só debois de terminado o serbiço, conforme a combinação – e saiu rápido, deixando Nego Bebão furioso e de goela seca.

Desatendido em sua precisão de beber, Nego Bom abandonou o trabalho e, de um salto só, pulou da escada, esbravejante: “Está suspensa a pintura!”. Faltava, apenas, completar a última palavra, CUNHADO. Detalhe desastroso: só as duas primeiras letras haviam sido escritas.

Desfolegado, o pintor chegou ao boteco, olhou para a fachada da quiberia, sentiu o efeito da abrupta interrupção da escrita, imaginou a estupefação de todos ao lerem o letreiro inacabado, pressentiu a cólera do turco, pediu a costumeira dosagem de cachaça e se encharcou até ficar “pra lá de Bagdá”, gargalhando ante o iminente resultado de sua atitude arteira.

Menos de hora, e o turco retornou para acompanhar a evolução do serviço. Desacreditou do que seus olhos viram. Enfurecido, esbofeteou o ar, destilou alguns impropérios em árabe e disparou em busca de Nego Bom. Encontrou-o alcoolizado como de rotina. Sentiu a inutilidade de qualquer argumento ou discussão. Resolveu agir energicamente, pois o fato já era anedota e corria de boca em boca; alguém chegou a pilheriar ao ver o “Curnhado” passar desarvorado: “Quando poderei conhecer a quiberia do... A frase, naturalmente, a exemplo da palavra-personagem da confusão, ficou incompleta: um golpe certeiro do turco nocauteou o pilantra.

Bem, para completar a palavra inacabada, solicitou-se a intercessão do vigário que, irritado, abominou tal imoralidade: “Logo no Largo da Matriz!?”, trovejou. E saiu à cata da polícia, que recorreu ao juiz, que mandou prender o pintor e guardá-lo no cofre, isto é, na cadeia por uma tarde e uma noite, até que se curasse da embriaguez.

 Dia seguinte, aos primeiros vestígios matinais, já destrolado, embora com os passos ainda meio tortos, e sob escolta policial, viu-se forçado a completar a maldita palavra, para alívio da comunidade e, em especial, de Assad, a tal altura, seu maior desafeto.

A partir de então, sempre que perguntado se já degustou alguma das iguarias do turco,  Nego Bom respondia com seu veio de trovador debochado:

 – Em vez de quibe ou esfirra,
pro xilindró me mandaram.
Mas não fez mal, compensou:
as duas letras me vingaram.


Baiana de Urandi e goianiense por adoção, LÊDA SELMA (de Alencar) é graduada em Letras Vernáculas e pós-graduada em Linguística. Poetisa, contista, cronista (escreveu para o Diário da Manhã por 21 anos, aos domingos), integra várias antologias nacionais e internacionais. É verbete em obras como o Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, de Nelly Novaes Coelho, São Paulo/SP, e Enciclopédia de Literatura Brasileira, Afrânio Coutinho/J. Galante de Sousa, São Paulo/SP. Atual vice-presidente da Academia Goiana de Letras/AGL (ocupa a Cadeira 14), da Associação Nacional de Escritores/ANE, União Brasileira de Compositores/UBC, União Brasileira de Escritores/UBE-GO e Associação Goiana de Imprensa/AGI. Publicou 15 livros (poemas, contos, crônicas). Entre várias premiações, o Troféu Tiokô de poesia, da UBE/GO, Troféu Goyazes Marieta Telles Machado, de crônicas, da Academia Goiana de Letras, e o Mérito Cultural, pelo conjunto da obra, da UBE/RJ. Recebeu os títulos: Cidadã Goianiense e Cidadã Goiana

Nenhum comentário