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David Toscana, Francisco Coloane e Carlos Maria Dominguez: três paisagens literárias [Nei Duclós]

David Toscana, Francisco Coloane e Carlos Maria Dominguez: três paisagens literárias


Texto publicado na Revista Bula

Escritores hispânicos compartilham conosco suas ficções com todo o perfil de verdades históricas, nos atraindo para seu inumeráveis abismos

A geografia literária de três países de língua espanhola que nos cercam com sua presença em muitos outros vetores — do comércio à História e ao turismo — nos diz mais sobre eles do que um contato direto. Seus autores, mais recentes como o mexicano David Toscana, ocultos como o uruguaio Carlos Maria Dominguez ou clássicos como o chileno Fran­­cisco Solano, relatam seus universos imaginários fortemente arraigados em paisagens que sobram. No deserto, na beira rochosa do mar ou no descampado, paisagem é ficção, tão real quanto um sonho ou a imagem num espelho.
O escritor vai à guerra
O romance do mexicano David Toscana, “O Exército Iluminado” (Casa da Palavra, 168 páginas), é um drama en­jaulado na comédia. Per­so­nagens infantis que fazem o papel de adultos, o avesso da série Chávez, revelam que o fracasso do México está sintonizado com a maturidade de­cepada pela violência.

O país infantilizado por sucessivas derrotas é representado pelo exército improvável de um velho comandando cin­co crianças deficientes mentais, que decidem reconquistar o Texas, perdido há 150 anos para os Estados Unidos. Eles partem montados numa carroça puxada por uma mula, nu­ma declaração de guerra do escritor à História como fonte de ressentimentos, à identidade nacional à mercê da exclusão, à realidade a serviço da morte, à vida sob a tirania da falta de imaginação.

Como o personagem principal do filme de Dalton Trum­bo, “Johnny Vai à Guer­ra” (1971), o autor não dispõe de braços ou pernas para fazer o inventário da sua luta, a não ser batendo com a cabeça na cama em código Morse, quando seu desespero emite um SOS. É o que Toscana faz, ao conduzir seu grupo de protagonistas patéticos para mais uma derrota. O líder, um Qui­xote envenenado por leituras patrióticas, não tem condições físicas para vencer a maratona que teima em participar, apesar de não estar registrado nela. Os quatro meninos e uma menina, seduzidos pelo general de araque, saem de suas rotinas canibalizadas pelo sistema e povoam a narrativa com uma ilógica sucessão de cenas ilusórias.

Toscana, preso na cama da escrita como um sobrevivente do holocausto, oculta o quanto pode o narrador que denuncia a “realidade” da tragédia. A maior parte do tempo faz parte dela, não colocando fron­teiras ente diálogos e descrições, entre épocas, geografias, pensamentos e ações. Tudo se mistura de maneira absolutamente clara, numa demonstração de força do seu domínio do ofício. Ele sabe, como poucos, contar uma história pelo seu avesso, ou seja, sem ceder às definições de montagens estabelecidas pela tradição ou vanguarda. Cria uma tessitura particular e original, opondo-se a qualquer camisa-de-força, inclusive a mais recorrente delas, a de enquadrá-lo como um anti-García Márquez.

Agora virou moda falar mal do “realismo mágico”. É costume esquecer que esse é um rótulo que não faz justiça à grande quantidade de obras-primas surgidas a partir dos anos 1960, quando um pu­nhado de escritores perto ou dentro do gênio rompeu as comportas da linha evolutiva da literatura do Ocidente. A folclorização nada tem a ver com o conteúdo e muito me­nos, por oposição, com os livros e autores que agora es­tão chegando.

Há uma carga excessiva de conceitos como niilismo ou puro entretenimento literário, como se o talento estivesse a serviço do mundo como mercadoria ou fizesse parte da falsa natureza atribuída aos valores do mercado. David Toscana não se presta ao en­quadramento perverso das teorias que procuram enterrar a criação literária num entulho de charlatanices. Ele trata do seu mètier, a literatura, e segue à risca a máxima de que todo romance (pelo menos, os que contam) é sobre literatura.

Como estamos cercados pelas mais diversas ficções — econômica, política, publicitária, jornalística, corporativa, religiosa, turística — Toscana despe a linguagem de seus mantos virtuais e busca a es­sência do que a palavra pode render, fora desse circo de horrores. É uma saída para os contemporâneos, que, segundo suas palavras, “estão doentes de realidade”. Isso não significa alienação, como chegaram a sugerir. Estamos doentes das falsidades sob a capa do real e a única maneira de quebrar esse manto é por me­io da literatura.

Um romance é assim o último reduto do humano, pois encontra o épico na escassez, sem mascarar as nossas limitações. Em seus livros, Toscana encontra sentido em vidas datadas, inclusive rompendo com a ilusão do falso heroísmo, e apostando na força contida em nossa pequenez. Faz isso sem nenhuma grandiloquência, mas com a grandeza poética necessária que as palavras inventam para nos redimir. Não há final feliz em seus livros, porque isso seria trair a própria necessidade de escrever. Ao ir à guerra, o escritor sabe, como os garotos que assumiram a batalha perdida, que sua decisão não tem volta.

O escritor relata a dor de perder a guerra, mas não su­cumbe à sua principal tentação: a de imortalizar sua saga à custa do sangue alheio. Ele contamina a narrativa forçando, por exemplo, o sacrifício do gordo Comodoro, o escudeiro insubordinado, absolutamente contrário a tudo o que Sancho Pança representa. Co­modoro não procura trazer o Quixote Juan Matus (o ge­neral maratonista) à mediocridade da vida diária, antes o incentiva e até o supera. As­pirava à glória, mas teve um enterro de mendigo.

O rescaldo do drama não é o riso gerado no ventre do deboche. Nem a celebração das perdas. Ou a entronização das mensagens significativas. É apenas o livro, o que temos nas mãos, idêntico ao livro imaginário de “O Último Leitor”, também lançado no Brasil, e que ao fim da leitura se revela real. O exemplar que temos nas mãos é a parte que nos cabe neste latifúndio. Não é pouco, já que estávamos à procura não de um passatempo, mas de uma forma de ficarmos habitados neste deserto.

“O Último Leitor” é o im­pressionante relato do bibliotecário sem leitores, perdido numa vila cercada pela seca, e que se vê envolvido na morte de uma menina encontrada pelo seu filho no fundo do único poço que ainda mantém um pouco de água. É o que somos, perdidos num mundo ágrafo, obrigados a decifrar um enigma. Não que Toscana detenha a chave, pois a esse papel ele não se presta. Mas ele nos traz um presente, o de acreditar que é possível romper com o círculo de ferro que nos mantém cativos, já que a palavra liberta, quando ela é ditada pela coragem.

Oculto objeto da lembrança

Qual o objetivo do desejo? Testar o próprio limite, nos diz Carlos Maria Dominguez no impressionante “A Casa de Papel” (Francis, 100 páginas). Amontoar livros até ser enterrado pela própria biblioteca, por exemplo. Como os outros vícios, os livros também são perigosos, adverte o autor (argentino, que vive no Uruguai). Podem participar de um ou mais crimes. Quais as pistas deixadas por Dominguez?

São elas: todos os livros são imprescindíveis, mas eles exigem mais de uma vida para que você saiba o que merece saber; como você não consegue chegar até o teto da sua ambição, acaba ad­quirindo a cor dos pergaminhos, como o personagem De­lgado, o homem que dá a chave para en­tender o enigma que envolve o narrador. Você pode ser um co­lecionador (como Delgado) ou um estudioso (co­mo Carlos Brauer, a personagem chave da trama). O primeiro pode manter a sanidade (o ego dividido entre a sobrevivência e o prazer da leitura), enquanto o segundo pode enlouquecer. Por que Carlos Brauer enlouqueceu?

Porque, aposentado e com boa herança, dedicava todo seu tempo à sua paixão. Porque descobriu afinidades entre autores de nações opostas, que se tornam assim complementares. Porque enxergou uma arquitetura subliminar no design de letras e linhas nas páginas impressas, o que significa uma partitura oculta que acompanha, em silêncio, a leitura. Porque não quis para sua biblioteca o destino de tantas outras, dilapidadas pelos espertalhões, decomposta para melhor proveito de um mercado de antiguidades e por fim disputada em seus exemplares raros em detrimento de outros considerados menores, o que é um crime contra a obsessão que reuniu todos os títulos.

Carlos Brauer enlouqueceu porque tentou organizar sua biblioteca no espaço que não dispunha, num fichário excêntrico que no fim o acaso queimou. E, talvez, porque não se ligou aos contemporâneos com a mesma intensidade com que acumulou seus livros. Deixou marcas da sua passagem em corações afins, como a catedrática inglesa tão culta quanto ele e que foi capaz de morrer atropelada lendo poemas de Emily Dickinson. Seu crime foi ter deixado passar a oportunidade de um amor que o libertasse da loucura e que no fim não deixou vestígios, a não ser um velho exemplar de “A Linha da Som­bra”, de Joseph Conrad.

A indiferença existente no mundo dos livros não era a mesma de Brauer em relação a seus semelhantes. O estudioso que se deixou soterrar pela própria biblioteca não compartilhava com o universo de patranhas de autores, livreiros, editores, jornalistas, professores. Era um outsider no mundo encadernado e de brochuras infinitas. Procurava (ou seria o narrador?) a porção europeia dos autores latino-americanos. Pro­curava mais do que isto: as respostas para os mistérios que os livros encerram ou acobertam. Mas não acha o principal: o amadurecimento de uma vida que só se consegue com renúncia e não com auto-piedade ou autofagia.

Brauer se refugiou na praia e construiu uma casa que tinha os livros como tijolos. Procurou desesperadamente o livro de Conrad, que é sobre o rito de passagem entre a vida juvenil e a adulta, mas não sabia o significado dessa busca. Quando o encontrou e remeteu pelo correio até a catedrática inglesa, já era tarde demais. Uma vida tinha se desperdiçado. O narrador precisou ir até os confins da sua terra para entender a tragédia. Descobriu, no caminho, o vazio das multidões brincando com as novidades eletrônicas, apartadas, como os autores frustrados ou célebres, de uma vida espiritual plena, que só se consegue quando há ascendência do humano sobre o papel, da vida sobre a imo­bilidade da representação.

Uma lição que Dominguez nos apresenta como um conto policial que dispensa a astúcia dos protagonistas, mas não deixa de lado os pequenos assassinatos das nações globalizadas. E que mergulha na história universal do livro como um guia de primeira grandeza, sem exibicionismos, pois sabe onde existe o conteúdo que faz falta: aquele que não ilude com as filigranas da falsa sabedoria, mas que leva pela mão até o tesouro oculto da cultura acumulada por séculos de celebração e dor.

Por isso, é preciso ler a literatura de Carlos Maria Dominguez nesta época em que as inutilidades se acumulam nas vitrines (alugadas) das grandes livrarias. Às ve­zes, na longa espera de um avião, a companhia de um livro como este é mais útil do que a perda de tem­po num título qualquer de autoajuda ou de filosofia barata (aquela que economiza neurônios ao ser consumida).

No extremo sul do nada

Francisco Coloane, festejado e importante escritor chileno, nos revela a paisagem, inédita na literatura, do Chile Austral, ambiente para a danação dos homens com suas ambições, fraquezas e terrores. Seu livro de onze contos, “Terra do Fogo” (Francis, 221 pá­ginas), nos leva de roldão por praias assustadoras, penhascos gigantescos, neves eternas, bichos estranhos, guerras de extermínio. E principalmente para o coração das trevas dos aventureiros e vítimas que por lá habitaram no século 19, quando o território foi disputado da maneira tradicional, por meio da cobiça e da violência.

Coloane é fiel à época que eterniza com seu texto impressionante. Ele, como seus personagens, acredita na evolução clássica das criaturas que se transformam para responder às suas necessidades e às pressões do ambiente. Acha, como os primeiros estudiosos das culturas indígenas, que as lendas ancestrais de povos isolados têm ligação com as crenças ocidentais, onde deuses, dilúvios, pecados originais, compõem a saga de uma criação completa, da separação entre terra e céu, nascimento e morte das estrelas, do sol e da lua. Todo esse painel de maravilhas cai no chão duro da maldade humana, onde o que conta é o assassinato do próximo que traz algum ouro na bolsa, ou cometeu algum ato que provoca extrema indignação.

Há lugar para o sarcasmo, a brutalidade contra os indefesos, a solidão irreversível, a mudez de bocas e cenários. O vento oeste sopra sem parar na vegetação e nas pedras, enlouquecendo os homens e chegando na percepção do leitor como um náufrago depositado morto na praia. Não há o que fazer nesse mundo completo, onde tudo está disposto em seus arames farpados. Não podemos ter esperança no velho que se vinga porque lhe roubaram um mascote, no iugoslavo que domina os pistoleiros com armas e suas artimanhas para garimpar riquezas, no viajante que tenta matar o companheiro de jornada, no sobrevivente mal agradecido que esconde seu tesouro de quem lhe salvou a vida. O mal é o reflexo da paisagem inóspita. Dali ninguém sai. Nenhum navio vai para o horizonte. Todos encalham nas armadilhas de águas torrenciais e montanhas geladas.

O que conta é a narrativa e não os sucessivos desfechos. Não importa chegar ao fim, pouco existe na última página de cada história. O que vale é esse caminhar no emaranhado de situações que oprimem os personagens. Essa estrutura circular, em que o leitor acaba se entregando ao destino dos personagens, é a metáfora das situações que Coloane retrata, com a paciência de um Joseph Conrad e uma andança que lembra Jack London, autores sempre lembrados quando se fala em Coloane. Mas este se difere de seus pares, pois, segundo seu depoimento (ele morreu em 2002, aos 92 anos) viveu realmente nos lugares que descreve, ao contrário de London, que teria inventado a partir de relatos alheios. E não chega à altura de Conrad, mas é covardia comparar qual­quer autor ao maior escritor do mundo.

Coloane encontrou sua linguagem desde os 19 anos, quando começou a publicar, depois de passar um tempo se aventurando por aquelas plagas. Se especializou no que relata e cedo aprendeu que lá, onde tudo está por conquistar, se manifesta primeiro a ferocidade humana, a única capaz de ficar à altura da paisagem devastadora. Livro para ler com atenção redobrada, pois cada detalhe conta e nada do que aparece no livro é reconhecido. Somos, como leitores, os desbravadores dessa literatura que tanto tardou a chegar até nós. É como diz Walter Salles na apresentação: “Cada conto de ‘Terra do Fo­go’ atiça a nossa imaginação e nos projeta para um mundo além-fronteiras”.

O mar e a navegação em barcos e navios de pequeno calado são, neste livro, personagens determinantes, que confinam as pessoas, definem seus destinos e nos embarcam em ondas surpreendentes, encharcando as mãos de graxa e peixe e fustigando os corpos transidos pelos desígnios de deuses cheios de fúria e de caprichos.
Fonte: Revista Bula

Nei Duclós- Jornalista desde 1970, autor de seis livros publicados de poesia, romance, crônicas e literatura infanto-juvenil e alguns inéditos de ensaios, crônicas, poesia e contos. Formado em História pela USP.
Texto publicado na Revista Bula

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