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SAUDADES [Raul J.M. Arruda Filho]

SAUDADES  

Ao olhar para trás, numa espécie de retrospectiva de minha infância e adolescência, descubro que estar vivo (depois de ter passado a barreira do meio século) implica em se alimentar de uma série de lembranças – e que essa, digamos, nostalgia não têm a menor importância no mundo em que vivo.

Lembrar o passado é compreender o significado da orfandade – e, paradoxalmente, do contentamento.

 
 
Sinto falta das garrafas que – para desespero de meu pai – troquei por picolé e sorvete.

No armário da cozinha não encontro a caneca "esmaltada", onde costumava beber água e/ou leite.

No guarda−roupa, faltam−me calças de "brim curinga".

Nunca mais vou ver aquela professora do primário, o primeiro anjo a povoar os meus sonhos inquietos.

O mundo estava dividido em dois grupos: de um lado "colorados"; do outro, "Guarani até debaixo d’água".



Capilé, groselha, gasosa, Crush – bebidas que não existem mais.

Não é mais possível brincar de faroeste, momento em que imitava os caubóis da matinê do cinema, no domingo.

Plínio Luersen era o "ás do volante" da época. Seus adversários "comiam poeira".

Nunca mais serei atormentado pelos fantasmas da Emulsão Scott (óleo de fígado de bacalhau) e das pílulas de vida do Dr. Ross. No armário de remédios, a pomada Minancora prometia nunca nos abandonar.

Ainda não sei qual é a diferença entre os fermentos Fleischmann e Royal – que eram comprados "na caderneta", lá na mercearia da esquina.

Piquenique era no Salto ou na Gruta de São Bom Jesus – incluía cesta de lanches, toalha xadrez, formigas variadas e garoa.

Tenho saudades dos presentes de aniversário – e, por extensão, de minha madrinha.

Doce de gila, pêssego em calda, butiá colhido na árvore – sabores e aventuras que perdi.

Amargarei até o fim de minha vida não ter aprendido a nadar.

Neil Armstrong pisou na lua e os meus olhos, diante da televisão, não acreditaram.

Sinto falta da bicicleta que nunca tive.

Gostaria de reencontrar aquelas meninas que, nas manhãs de domingo, freqüentavam a missa das dez. (Ir à missa não era questão de fé: elas iam namorar; eu, na doce ilusão de que uma delas namoraria comigo).

Cinema precisava estar acompanhado por Diamante Negro, Mentex, Pirulito Zorro e balas azedinhas. Depois da "fita", era imprescindível comprar revista em quadrinho (Batman, Super−Homem, Pato Donald).

Ninguém lamenta o desaparecimento do salão de sinuca do Clube 14. Pelo mesmo caminho, sem choro nem vela, seguiram o Café Ouro, o Lanchik e todos os "inferninhos" que forneciam (por preço a combinar) alivio à opressão do mundo.

O paraíso tinha nome: Bazar Danúbio.
Nas festinhas, a radiola portátil tocava – sem parar − Jerry Adriani, Wanderléia, Os Mutantes e outros menos cotados pela "Contigo" e pela "Sétimo Céu".
 Todo garotão que quisesse estar "na moda" precisava usar calça boca−de−sino e camisa volta−ao−mundo. Tênis de lona, cano alto, All Star, também fazia parte do figurino – mas só nos finais de semana, porque o calçado do dia−a−dia era conga ou kichute.
Os irmãos e amigos mais velhos (acima de 17 anos) dirigiam Karmann Ghia e bebiam "Cuba Libre", "Hi−fi" ou "Porta aberta". Enquanto ouviam Rick Wakeman, Pink Floyd e Janis Joplin, acendiam uns cigarrinhos da "erva maldita".

Não tive canivete (muitos anos depois comprei um Vitorinox – que perdi em situação muito tola).

Meu avô, lá na Coxilha Rica, contava dezenas de "causos" de assombração – momentos em que o terror e o lúdico se confundiam. Jamais vou recuperar essa alegria.
O sonho de todo motorista era dirigir um Fenemê.

"Dijáoji", "trezontonte", "bombiá", "vará" e outras palavras que não constam dos dicionários eram pronunciadas sem constrangimento (acentuando tonicamente a última sílaba)

Meu pai fumava duas carteiras diárias de Continental (sem filtro).

Quem, nos dias de hoje, consegue aquilatar o prazer que senti ao ler as aventuras de Winnetou e Mão−de−Ferro, heróis literários criados por Karl May?

Meu reino por um pedaço de pão "feito em casa"!



Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 
Todos os direitos autorais reservados ao autor.

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