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Carta de uma casa velha a inquilinos novos [Cinthia Kriemler]

Carta de uma casa velha a inquilinos novos


Acaso me fosse possível, eu iria recebê-los. Tamanha a ansiedade em que me encontro para superar esse período prolongado de tristeza e solidão que me segue há tanto tempo. Não depende de mim afastar o infortúnio. Nunca dependeu. Se estivesse em minhas mãos decidir felicidade, eu nunca teria chegado a estar assim, tão vazia, despida de qualquer emoção decente.

Sou um corpo nu e exposto. Ora me deparo com olhares de tolerância, aprovação e até mesmo cumplicidade. Ora com o riso dos idiotas, com o desdém dos preconceituosos, com o deboche dos inconsistentes. Os acontecimentos moldam meus humores e é nisso que se descontrolam os meus sentimentos. Minha vida tem sido estranha e solitária.

Eu poderia fingir que tudo está bem, para não assustá-los. Mas mentiria. De tanto silenciar ante as histórias do tempo, fui acumpliciando-me com segredos, ensurdecendo-me aos lamentos, cegando-me aos crimes. Houve muitos por aqui. Todos eles por amor, disseram-me várias vozes ao longo das décadas. Disparate! Só o que vi da morte é que é desalento, desistência.

Queria tê-los ido encontrar na entrada dos jardins. Uma primeira impressão, um momento de leve dúvida se deveria ou não sorrir, uma acolhida elegante. Mas a vista envelhecida já não alcança tão longe e, afinal, logo estaremos juntos, porque já consigo delinear seus vultos aproximando-se da porta principal. Vejo que desistiram do carro e puseram-se a pé desde o início da propriedade. Bom sinal. Ao menos se importam em apreciar o que possuem. E se o fazem pelo simples ato de exibirem a si mesmos e aos outros a pertença, não vejo diferença no que sentirão com isso os arbustos, as flores rasteiras e o pequeno lago revigorado pela limpeza de alguns dias atrás. Sentir-se-ão apreciados. Depois de um tempo na existência, a gente aceita qualquer olhar que nos distinga do esquecimento. E os motivos deixam de importar.

Estou aqui retorcendo as palavras, pois há muito mesmo a lhes contar, mas a tentação de acompanhá-los caminhando pela alameda faz com que a curiosidade da inspeção supere os discursos preparados de véspera.

Cinco... Vocês são cinco. Não, não! Percebo agora, em meio às pernas do menino mais alto, um cachorro peludo que se atordoa com os novos cheiros. Então, são seis. Que a mim não dizem nada pernas ou patas, se o que constato é serem todos, ao final, criaturas que preenchem meus dias com afetos, desavenças, buscas, entregas.

Melhor concentrar-me novamente nos fatos. Vejamos... O que seria mais adequado para este nosso primeiro contato? Um abrir de porta com um sorriso amigável? Ou o escancarar das janelas para permitir que o vento substitua o ranço das memórias por aromas de mato? Mais tarde, no entanto, teremos que conversar sobre coisas mais sóbrias. Teremos, sim. Mas... Coisas? O que estou dizendo! Quando foi que me entreguei a isso de chamar de coisas os acontecimentos? Não, não! Falaremos de histórias, de infortúnios, de vidas que passaram pela minha. De gente que me contou, em sussurros ou gritos, suas aflições, seus medos, suas vontades. Gente que me mostrou seus demônios. É sobre eles que preciso alertá-los. Sobre os demônios que me habitam. Antes que o vozerio de vocês, agora tão perto, trespasse o umbral recatado que nos separa.

  Vou lhes contar sobre a noite de tempestade em que filho e pai se confrontaram. E da gaveta onde uma arma repousou dissimulada, até cumprir o seu destino parricida. E das razões de cada um. Do pai que só tinha a mim para dividir as suas dúvidas. Que procurava no alto um Deus para lhe dar respostas fabricadas. Do filho que não podia mais ser quem não era, alma-fêmea presa a um corpo masculino. De como eu lhes ouvi as vozes quando iniciaram a alterar-se. E sobre as portas batidas com força que me fizeram estremecer. Prenúncios, prenúncios! De que serve aos inertes como eu antecipar desgraças? A mim coube, mais uma vez, acompanhar. O cessar dos argumentos, a luta entre forças tão desiguais, o tiro que seria paterno e que se tornou, num último instante, filial. E como não bastasse, pouco adiante, o horror de um segundo estampido que fez cessar qualquer outro respirar que não o meu.

Preciso, ainda, falar sobre as heranças disputadas a veneno no meio de noites sem lua. Das crianças molestadas em seus leitos pelos que deveriam protegê-las, dos velhos depravados a consumirem-se em sexo sem sentido, dos meninos a aprenderem com os capatazes a curra das serviçais humildes. Dos tempos que andaram e andaram e andaram até converteram revólveres e venenos em drogas brancas, inaladas em consolo ao desconsolo. Mortes demais. Do corpo; do espírito. Tantas que nem os anos foram capazes de apagá-las em mim.

Doem-me à exaustão a estupidez da intransigência, a inocência sufocada, a cobiça e a miséria que o desfile do tempo trouxe para dentro de mim. E exaspera-me pensar que demônios ainda possam estar por vir. Por isso, talvez, esta pressa em antecipar-me aos fatos e em apresentar a vocês o que sou, uma casa omissa, alquebrada.

No entanto, que estranho... Desviam-me do passado esses risos que me adentram despreocupados e a leveza desses pés que sinto agora sobre as tábuas do meu assoalho. Surpreende-me ver braços e mãos que abrem as minhas janelas e que deixam o sol entrar para aquecer-me as paredes mofadas. Afagam-me os ouvidos essas exclamações que aprovam o que sou, o que tenho a dar.

Talvez eu deva aguardar. Talvez eu não seja mais infortúnio. Talvez minhas paredes ainda escutem segredos de riso. Talvez a morte esteja em trégua comigo e me conceda expulsar os demônios que me habitam.

Talvez.

Cinthia Kriemler - Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.



Um comentário

Jacqueline Salgado disse...

Cinthia, vc é demais! Belo, belo, belo!!!!