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IFIGÊNIA [Raul J.M. Arruda Filho]

IFIGÊNIA

Um dia, desses que nunca mais desaparecem da memória, Aniceto rompeu o namoro com Ifigênia. A justificativa usada foi vaga, esquecendo os quase cinco anos de juras de amor eterno. Como se isso fosse insuficiente, o cara−de−pau pediu compreensão, estava passando por uma fase difícil.

Algum tempo depois, tudo se esclareceu. Aniceto entrou no cinema abraçado com Cleuza, uma morena sorridente, de coxas largas e olhar safado – daqueles que derretem qualquer tipo de resistência masculina.

Não faltou amiga (da onça) para, no mesmo instante, correr até a casa de Ifigênia e contar, tintim por tintim, o que todos haviam visto.

Lágrimas escorreram pelo rosto de Ifigênia, como se fossem filetes de ódio.

Jurou vingança. Aquela desfeita não poderia passar em branco. Alguma coisa precisa ser feita. Era necessário cobrar, com juros e correção monetária, a humilhação que estava sofrendo. Se aquela (e aqui ela usou um adjetivo "carinhoso" para qualificar a rival) estava pensando em ficar com Aniceto, de graça, pois podia ir "tirando o cavalinho da chuva". Afinal de contas, ela era "filha de Xangô" – lá no terreiro de Mãe Afonsina. E isso todo mundo sabe: nenhum filho de Xangô foge da luta.

De qualquer forma, em um primeiro instante, a vingança ficou na promessa. Sem saber como agir, Fernanda deixou o tempo passar. Enquanto isso, Aniceto e Cleuza aproveitaram as coisas boas da vida – audaciosos amassos escandalizaram "as senhoras de respeito". O difícil era entender como elas conseguiam ver o que estava acontecendo nos lugares mais escuros da praça. Quase todas as manhãs, detalhes escabrosos corriam de boca em boca, alimentando o clima de fofoca que incendiava o bairro. Por mais que Ifigênia fizesse "ouvidos de mercador", em alguns momentos era inevitável encarar, de frente, a tragédia. A única diferença era que não havia mais choro. A fonte secara.

Depois de algum tempo, talvez três meses depois, o carteiro entregou para Ifigênia um envelope azul. Era o convite de casamento. Cheia de raiva, o rasgou em mil pedaços. Depois, mordeu o lábio inferior até sentir o sabor adocicado do sangue.

 
Talvez, por penitência ou para ver com "os próprios olhos" que a noiva era a "outra", Ifigênia reuniu forças e foi até a igreja. Antes, mandou um eletrodoméstico caríssimo como presente. Mesmo estando acima de suas posses, usou o cartão de crédito para parcelar o débito em várias vezes.
Sentou na terceira fila. Durante a marcha nupcial, abriu a bolsa e acariciou o revolver que havia roubado do irmão mais velho, uma semana antes. Um "Taurus", calibre 38. Em seguida, sorriu melancolicamente.

Cleuza atravessou a nave com a graça inequívoca das noivas felizes. Diante do altar, estendeu a mão para Aniceto. O padre iniciou a cerimônia. Um "clima" de angústia tomou conta do ambiente. Todos os convidados, sem exceção, olharam para Ifigênia. Esperavam por algum escândalo. Casamentos solicitam baixarias.

Ifigênia permaneceu imperturbável. Não esboçou a mínima reação – nem mesmo na hora do "se alguém souber de alguma coisa que possa impedir esse matrimônio, que fale agora ou cale−se para sempre". Parecia não ter nada com o assunto.

Quando os noivos começaram a receber os comprimentos na porta da igreja, Fernanda fez questão de desejar felicidades para os dois "pombinhos". Aproveitou a oportunidade para pedir desculpas: não poderia comparecer à festa, infelizmente tinha outro compromisso.

Em seguida, se afastou um pouco e abriu lentamente a bolsa. Teve dificuldade para encontrar o que estava procurando. Quase derrubou um batom no chão. Finalmente, pegou um lenço cor−de−rosa e, em câmara lenta, enxugou o suor que teimava em borrar a maquiagem.

 
Foi para casa. Colocou um CD no aparelho de som. Maysa interpretando Dolores Duran. E esperou. Esperou quase dois anos (não necessariamente ouvindo boleros).

Aniceto, uma tarde, chegou mais cedo em casa. Foi uma gritaria sem fim. Nu, Manoel, filho do dono da mercearia da esquina, fugiu pela janela. Cleuza levou uma surra de cinta, que só foi interrompida com a chegada da polícia.

Sem uma gota de arrependimento, Ifigênia está namorando Francisco (que até agora não havia entrado nessa história). Quer casar. De véu e grinalda. A carta anônima, denunciando a traição de Cleuza foi ela quem escreveu. Aqueles telefonemas estranhos, no meio da noite – bastava Aniceto atender para que desligassem – também foram idéia sua. Em algum lugar no passado havia lido que "a vingança é um prato que deve ser servido frio".

 


Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 

Todos os direitos autorais reservados ao autor.

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