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A loucura vista de um lugar seguro [Vanessa Ferrari]

Imagem de “Institute Benjamenta”, filme inspirado

 em “Jakob von Gunten”.
A loucura vista de um lugar seguro

Por Vanessa Ferrari

“Fiz uma profunda reverência, quase até o chão, ante a criatura que já não me dedicava atenção nenhuma; murmurei um ‘Adieu, senhor diretor’, como determina o regulamento, bati os calcanhares um contra o outro, dei meia-volta — ou melhor, não, procurei com as mãos a maçaneta da porta, sempre fitando o rosto do senhor diretor, e, sem me voltar, esgueirei-me porta afora. Assim terminou minha tentativa de fazer uma revolução.”

Não tenho interesse pela vida dos escritores. Não quando essa curiosidade serve ao propósito de entender a obra do autor. Não busco pistas que revelem o que é verdade ou ficção nos personagens dos romances; tampouco arrisco análises psicanalíticas para descortinar o momento em que o desajuste do autor virou arte. Questão de gosto. Essa convicção, porém, que eu tinha como algo imutável, ruiu quando conheci Robert Walser e o seu romance Jakob von Gunten. Por causa de Jakob, esse narrador-personagem estranhíssimo, decidi vasculhar a vida do autor, justificando a mim mesma que a intransigência só atrai desgraça, e me obrigando a rever certos maneirismos filosóficos, que comumente alimentam a nossa vaidade mas que, na maioria das vezes, são uma grande bobagem.

Jakob von Gunten é um rapaz perturbador. É ele que vai conduzir o leitor para dentro dos portões do Instituto Benjamenta, uma escola para formar serviçais. “Vestimos uniformes. Usar uniforme é algo que, a um só tempo, nos humilha e enobrece.”  É ele também que durante a narrativa irá se render de modo cínico aos ditames do diretor. “Obedeço razoavelmente bem, não tão bem como Kraus, que é mestre em precipitar-se de cabeça ao encontro das ordens, pronto para servir.”

Mas, na maior parte do tempo, Jakob irá se dedica ao seu passatempo favorito, tripudiar Kraus, seu colega de internato. “A cada dia que passa, Kraus olha para mim com expressão crescente de censura. O que acho encantador. Gosto de ver pessoas adoráveis um pouco raivosas. Nada me agrada mais do que transmitir uma imagem inteiramente falsa de mim mesmo àqueles que guardo no coração.”

Jakob von Gunten é uma figura muito estranha. Sentenciá-lo de cínico, cético, manipulador, mentiroso ou qualquer outra coisa não elucida a questão, porque o narrador não parece querer ser isso ou aquilo. E definir o personagem como paradoxal também é pouco, porque ao conduzir o leitor à rotina da escola (“Aqui se aprende muito pouco, e nós do Instituto Benjamenta, vamos dar em nada.”), ele despeja no leitor pontos de vista muito particulares. Ali não há um mosaico de imagens, um painel vigoroso, um estilo envolvente, uma escrita inteligente e inventiva, nada disso. Jakob von Gunten é o antijargão. Ele não é de direita, tampouco de esquerda, não advoga a favor de ninguém e não parece ser contra nada. O fato é que o leitor não tem onde se amparar. Na melhor das hipóteses, deverá se escorar em suas próprias convicções que, cá entre nós, como bem sabemos, podem vir abaixo a qualquer momento. Por isso, para ler esse romance, o leitor precisa saber que estará absolutamente só.

E sobre a biografia de Robert Walser, finalmente, que foi meu ponto de partida, não direi uma linha, porque saber como um autor viveu, morreu, e a relação intrínseca e subjetiva da vida versus obra, nesse caso, sejamos sinceros, não serve pra nada.

Fonte:

Vanessa Ferrari é editora assistente da Penguin-Companhia e mediadora do clube de leitura na Penitenciária Feminina de Sant’Ana. Ela contribui para o blog com uma coluna mensal.

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