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À LUZ DE VELAS [Raul J.M. Arruda Filho]

À LUZ DE VELAS

Durante algumas horas, como conseqüência de uma tempestade, parte da cidade ficou no escuro. Sem saber exatamente o que fazer, esperando que a energia elétrica fosse restabelecida, fui até a janela do apartamento. Olhando a escuridão urbana e a garoa que insistia em não parar, lembrei dos dias em que a luz das velas ou do lampião de querosene estabelecia cores e sombras que nunca mais encontrei.  

Na infância, em Morrinhos, no coração da Coxilha Rica, na propriedade de meus avós, vivíamos sem eletricidade, todo mundo dormia antes das vinte e uma horas e o mundo era mais simples, menos dependente da tecnologia (um dos poucos contatos com o mundo exterior era ouvir a sessão de avisos da Rádio Clube).

Pela manhã, depois de ajudar na ordenha das vacas, caneco de camargo na mão direita, pedaço enorme de pão feito em casa (camada de nata com um dedo de espessura) na outra mão, a boca lambuzada pela voracidade, o olhar de reprovação dos donos da casa (controlando-se entre o desejo de puxar a orelha do infrator e o sorriso condescendente: “Pare quieto, menino! Parece que você tem bicho-carpinteiro!”).  

Para o almoço, bastava pedir que alguém fosse à horta e colhesse batatas, tomates, alfaces, cebolinha verde. Na volta, se pudesse carregar, vinha parte da sobremesa: um punhado de butiás, cachos de uva, ameixas, figos (carnudos, sumarentos, doces como deve ser o paraíso). Na despensa, guardadas em vidros um pouco diferentes daqueles de compota de pêssego, havia vários tipos de geléias, doce de gila, marmelada – quitutes reservados para as raras visitas, de seis em seis meses aparecia um vizinho querendo negociar pelegos, sabão de cinzas ou uma saca de feijão.

No final da tarde, diante do oratório, ninguém escapava de rezar o terço, um ritual interminável, às vezes o olhar das crianças se perdia no carreiro de formigas que atravessava a sala, aquilo era uma praga doméstica, não adiantava destruir os formigueiros, era impossível evitar que a casa, algum tempo depois, fosse assaltada por um novo exército de operárias. A voz da avó ditava o ritmo das orações e nós aproveitávamos a oportunidade para fugir para um mundo particular (quem é que queria ficar ali, ajoelhado, rezando? Melhor sonhar com outra vida, de preferência na companhia do Capitão Nemo, do Tarzan, do Winnetou).

Não sei quanto tempo fiquei na janela, olhando para um tempo em que computador, televisão e celulares não tinham importância. As recordações desapareceram quando a luz voltou e precisei devolver o passado à escuridão.


Raul J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 
Todos os direitos autorais reservados ao autor.

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