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O escritor russo naturalizado americano Vladimir Nabokov
(1899-1977), cujos contos ganham antologia
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Contos de Vladimir Nabokov ganham antologia
RINALDO GAMA
Em conferência proferida em Havana, na sua primeira viagem a Cuba, em 1963, Julio Cortázar (1914-1984) fez menção a uma metáfora que se tornaria célebre: "No combate que se dá entre um texto apaixonante e seu leitor, o romance sempre ganha por pontos, ao passo que o conto precisa ganhar por nocaute".
O que se costuma esquecer, no entanto, ao revisitar essa extraordinária imagem, é que, logo a seguir, Cortázar advertiu: "Não se entenda isso demasiado literalmente, porque o bom contista é um boxeador muito astuto e vários dos seus golpes iniciais podem parecer pouco eficazes quando, na realidade, já estão minando as resistências mais sólidas do adversário".
Tais reflexões se aplicam sob medida à obra do russo Vladimir Nabokov (1899-1977), cujos "Contos Reunidos" chegam às livrarias brasileiras. Tão "sob medida" que valem, na outra mão da ressalva cortazariana, também para os seus romances - de aberturas frequentemente demolidoras (como esta: "Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado".)
Assim, o autor, do mesmo modo que na prosa de longo curso, em diversas oportunidades, antecipou-se ao que Cortázar definia como "acúmulo progressivo dos efeitos", nas histórias curtas, preferia aumentar a "pressão espiritual e formal" ao ritmo do desenvolvimento da trama.
Os exemplos disso se sucedem no volume ora lançado, que abriga 68 narrativas, escritas entre as décadas de 1920 e 1950 (a maioria delas em russo, no exílio berlinense, com exceção de uma em francês e dez em inglês, idioma adotado pelo ficcionista a partir de 1940, ano em que foi morar nos EUA).
Os melhores textos do livro --vários traduzidos aqui pela primeira vez-- são justamente os que privilegiam a paciência na estratégia de construção do conto. É o caso de "La Veneziana" (1924), que, "com sua virada surpreendente, reflete o amor de Nabokov pela pintura (à qual pretendia, quando menino, dedicar a vida)", como revela seu filho, Dmitri, no prefácio da obra.
A referência à "virada surpreendente" não deixa dúvida quanto à estrutura da história, que reserva para o fim o seu golpe consagrador. É ele que reforça de sentido os jabs desferidos no princípio do relato, ao retratar um "velho conhecedor de arte", para quem Deus não passava de "um imitador de segunda classe dos mestres que vinha estudando havia 40 anos".
Não se imagine, entretanto, que o autor deixe de exibir narrativas de excelência que provoquem imediato arrebatamento. Isso é alcançado sobretudo nos textos que ele desnuda diante do leitor. "O Passageiro" (1927), que põe em cena um escritor e um crítico, exercita com esmero essa técnica.
A metalinguagem, aliás, está presente em momentos distintos da coletânea, que contempla outras obsessões do ficcionista: os desacertos amorosos, as borboletas, o implacável destino.
"Nunca tive nenhum 'propósito' em mente ao escrever contos", diz o autor numa nota de 1976 a "Uma Página de Vida" (1935). Tome-se isso como uma boutade. Nabokov, como todo escritor de peso, jamais entrou em luta com as palavras --este emaranhado de espinhos-- acreditando que ela fosse vã.
RINALDO GAMA é doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP e autor de "O Guardador de Signos: Caeiro em Pessoa" (Perspectiva/IMS).
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