Fragmentos dos Sentidos
Fechou os olhos. Havia preparado uma dose de uísque para a hora derradeira. A mente começava a aceitar a morte do corpo. Olhou à pele ressequida. Os poros não eram os mesmos de 20 anos atrás. Células falecendo a cada instante. Sabia.
Abriu os olhos. Leu no documento de identidade, Victoria Aguri. Bebeu o uísque num trago só. Refletiu sobre o sabor do destilado barato. Viveu assim. Aproveitou sempre o melhor do pior. A morte é algo assustadora se vista de perto. Sabia.
Coçou a cabeça. Sorriu para si no espelho trincado. Recordou-se dos melhores beijos. Morreria sozinha. Mas bem acompanhada de lembranças nada fortuitas. Esfregou os lábios. Não abandonou a vida, a vida a forçava a deixar o palco. As tristezas são implacáveis. Sabia.
Espalmou a testa. O fim da jornada era vencer a simplicidade das escolhas. Morreria como heroína. Não ter ingerido veneno foi a grande batalha superada. Resistiu. A firmeza era importante para ludibriar a doença. Forte e sozinha. As pernas foram em outrora sedutoras. Sabia.
Aguçou os ouvidos. Não há vozes. O abandono completo. A tuberculose na vida de Victoria Aguri. Ouvia como o silêncio era ruidoso, expõe a verdade sem rodeios. Abraçou a morte. Sempre esperou o melhor do pior. Não havia morrido ainda. Sabia.
Obstruiu a audição. Resistir era contribuir para a morte da agonia. A morte tem uma voz doce. Ou seria tenebrosa? A ausência do corpo era o que a incomodava. Os pulmões em funcionamento debilitado. Sorrir era o remédio. Um escárnio. Sabia.
Os odores irresistíveis. O prazer dos corpos sobre a ex-escultural Victoria. As células mortas eram essências da fadiga do corpo. Amantes de espécies duvidosas. Patifes, sacripantas, escroques. Sempre teve o melhor do pior. Uma casa caindo aos pedaços. Sabia.
As narinas sangraram. Uma velha carcomida ouvindo o estertor da morte. A fragrância de Gabriela, sua filha. Partiu. A mãe alcoólatra, fracassada. Victoria, essa era ela. Abandono e a morte solitária. O peixe fedia na geladeira. O quarto, a podridão pura. Sabia.
Mordeu a língua. O sangue tem um gosto amargo. Fim próximo da finalidade. A meta era a morte. A respiração não a obedecia. O sabor do triunfo. Era chegada a hora. Se tivesse um punhal... Sabia.
O paladar exigia. Voracidade. Abraçou à morte com determinação. Viu a luz. Esperou o louvor. Afinal, foi guerreira. Quem a censuraria? Ótima amante, grande amiga, mãe preciosa. Sempre agradou o melhor do pior. Não orou. Não precisava de preces. Sabia.
Wuldson Marcelo é mestre em Estudos de Cultura Contemporânea e graduado em Filosofia (ambos pela UFMT). É revisor de textos, autor do livro de contos “Subterfúgios Urbanos” (Editora Multifoco, 2013) e um dos organizadores da coletânea “Beatniks, malditos e marginais em Cuiabá: literatura na Cidade Verde” (no prelo, Editora Multifoco).
Um comentário
Adoro os seus textos!
Postar um comentário