Jantar à francesa
– Gorete, vem cá...
– Goreeeeete!
– Ai ai ai! O que será que eu fiz de errado? Pronto, seu Afonso! Pode dizer...
A Gorete, mulata de coração e medidas bem brasileiras, empregara-se com o Afonso quando ainda estava casado com a Clotilde. Na separação, de tão querida e prestativa, fez parte das discussões da partilha. “Foi minha mãe que indicou”, argumentou a Clotilde, sentindo-se assim legítima proprietária. “Você já vai ficar com o Sebastião”, devolveu o Afonso, referindo-se ao cachorro e achando-se, como sempre, prejudicado. Depois de muitos argumentos de ambos os lados a Gorete acabou indo mesmo com o Afonso, o que lhe custou as ferramentas de jardinagem e a coleção completa de CDs do Cat Stevens.
– Senta aqui, Gorete! – oferecendo, como um verdadeiro cavalheiro, uma das cadeiras em frente à mesa finamente decorada.
– Na cadeira?
– Onde mais, Gorete?
– Ô, doutor... Faz isso não!
– Pode sentar...
– Mas eu nem terminei de lavar a...
– Senta!
– O senhor não disse que quando a visita chegar eu vou ter que me trancar no quarto e só sair de lá quando o senhor autorizar? E que não vou poder nem escutar atrás da porta? Tô adiantando o serviço... Vai que ela chega...
– Seeeeeenta!
– Sim, senhor!
– Relaxa, Gorete!
– O senhor não tava esperando a tal moça?
– A essa hora certamente ela não vem mais... – disse, humilhado, mas sem sinal de surpresa na voz, já que apesar de todos os preparativos, tinha mesmo estranhado que uma mulher como aquela, maravilhosa, tivesse aceitado de primeira um convite seu para jantar.
– Não vem? Oh, seu Afonso, o senhor tava tão animadinho... E deu tanto trabalho preparar este jantar!
– Pois é...
– E a arrumação? Deixei tudo limpinho. Não foi fácil! Que bagunça que tava... Nem acredito que consegui... Embaixo do sofá tinha até uma caixa com restos de pizza!
– Era Margherita? Você achou? Bem que eu procurei...
– Não sei não senhor, é verde essa pizza de “margarida”?
– Claro que não, Gorete. Está lá há mais de uma semana...
– Nossa! – colocando as duas mãos na boca e contendo um arroto que seria a prova do crime – E faz mal comer pizza assim, seu Afonso? –– só pra saber...
– O importante é que a arrumação ficou magnífica, Gorete!
– Pois então, eu caprichei! Até as velas que o senhor queria eu dei um jeito. Fui ao mercadinho comprar. Sem falar no bolinho de chocolate com sorvete que o senhor pediu... Que trabalheira achar o ponto!
– Petit gâteau!
– Isso, esse mesmo. Então não vai mais ter jantar, seu Afonso?
– Ah, mas vai sim... Com a fome que estou eu como até uma gazela!
– Que isso, seu Afonso! – escondendo as faces – Quando começa com essa conversa de “donzela”...
– Não, quer dizer... Uhnrmr... Você vai ser minha companhia no jantar! Que tal, ein?
– Eu, seu Afonso?!
– Isso mesmo! E tem mais... Vamos jantar à francesa...
– Eu só sei falar “brasileiro”, seu Afonso!
– À francesa... Vai ser chique, Gorete! É fácil... Primeiro, de entrada, comemos a salada, aí trocamos o prato e os talheres, depois apreciamos o 1º prato, troca tudo novamente, menos os copos, claro, que já deverão estar na mesa. Os de vinho e de água. Aí vem o 2º prato, e assim por diante...
– Nossa...
– Impressionada?
– Quem vai lavar isso tudo depois?
– Esquece a louça, Gorete... Faz assim... Acende as velas pra ficar um clima!
– Ah, não acendo não!
– Não acende?
– Eu tenho medo, seu Afonso. Isso não atrai coisa ruim?
– Como?
– Sei lá... Pomba-gira, Exu, o coisa-ruim...
– Poxa, Gorete, que nada... Que ideia!...
– Eu confesso! É que eu não encontrei as velas que o senhor pediu, então eu trouxe uma de sete dias...
– Tá certo, então é melhor esquecer as velas... Bota uma música enquanto eu abaixo um pouco a luz...
– Hehehehe
– Que foi agora?
– Eu? Ligar o som? O senhor tá com febre?! Não me deixa nem passar o espanador no móvel do som...
– Pois agora está autorizada! Bota um CD...
– Jura que eu posso? Legal... – esfregando as mãos – Vou adorar mexer naquelas luzinhas...
“Como se nunca mexesse...”, pensou consigo o Afonso, lembrando que sempre que chegava do trabalho o som, embora desligado, estava sintonizado na AM.
Enquanto a Gorete fuçava com desenvoltura a aparelhagem, o Afonso aproveitou para deixar a sala na penumbra.
– Hehehehehe
– E agora? O que foi dessa vez, Gorete?
– O senhor, hein? Faz a maior onda... Diz que é chique! Tô vendo aqui... Cheio de CDs piratas! Ô, seu Afonso... Que feio!
– Grrrrrrrrrrrrrr! Deixa que eu mesmo coloco!
– Tem Charles Aznavour... Piaf...
– Não dava pra ser uma pagodeira?
– Nãaaaaaao, Gorete! Não dá! Pagodeira não combina com jantar à francesa!
A música de repente toma conta do ambiente... Tudo que o Afonso queria naquela noite era um jantar a dois... Coisa que não tinha desde que se separou da Clotilde.
– Agora, o principal...
– Urruuuu... O que será? – Grita a Gorete esfregando as mãos e já entrando no clima!
– Tcham tcham tcham tchammmm... Champanhe! Evidentemente... francês...!
– Uhmm... Dá “barato”?
– Dá, Gorete... No nariz, faz cócegas!
“Bummmmm” fez a rolha ao saltar com violência da garrafa, sendo seguida por um jato do mais puro champanhe que foi logo direcionado para uma taça comprida!
– É igual sidra?
– Sidra? Tsss... Muito melhor...
– Melhor que Keep Cooler?
– Anrã, e ainda por cima não dá ressaca!
– Eba!!!
– Champagne per brindare un incontro Con te che già eri di un altro– O Afonso cantarolava, começando a se soltar...
– Nossa, patrão! – já provando um gole – o senhor fala francês?
– Isso é italiano!
– Uau! Jantar internacional... – sussurrou pra si, visivelmente impressionada – O senhor fala italiano?
– Uí! Um poquetito!
– Yes! – ela vibrou com olhos de admiração.
– E tem mais, Gorete... Tira o uniforme!
– Que isso, patrão... Assim, de primeira? Lá na comunidade o negócio é mais difícil... tem que suar mais... Jogar um chamego... O senhor sabe, senão não valoriza!
– Não, Gorete... To dizendo pra você ir lá no seu quarto se trocar. Veste uma roupa que seja bem linda, condizente com o evento. Nada de uniforme esta noite, por favor! Você merece... Aliás, nós merecemos!
– Mas eu não tenho nenhuma roupa caprichada... Eu ganho pouco! Quer dizer, não tô reclamando... Mas é um “pobrema” se vestir!
– Não tem? Puxa vida! Hoje eu queria uma mulher vestida de rainha!
– Rainha? Ah... Por que não disse antes, seu Afonso? Espera um pouquinho só... – E saiu correndo para o minúsculo quartinho dos fundos, que de tão pequeno, o Afonso desconfiava que ela, na verdade, dormisse em pé.
Foram necessários muitos minutos para a Gorete se vestir. Na verdade, despir talvez fosse a palavra mais adequada.
– Nossa, Gorete! Que isso? – engasgando com a torradinha coberta de queijo brie assim que ela surgiu na sua frente.
– Gostou, seu Afonso? – Ameaçando cair no samba ao som de La Vie En Rose.– ...minha fantasia de “rainha” da Unidos do Birigui...
– Se gostei? Adorei! Só tô procurando onde está a fantasia...
– No penacho da cabeça e no tapa-sexo de lantejoulas, ué!
– Só couberam três!
– O quê?
– Lantejoulas... O resto é purpurina pelo corpo!
– Anrã... – foi só o que ele conseguiu dizer – Muito criativo...
– Foi a vizinha da minha comadre que fez. Nem me cobrou!
– Deve ter dado muito trabalho!
– É, né? E além de tudo tem o charme do “topis léssi”
– Do quê?
– “Topis léssi”... O senhor não tá vendo? É “tudo” meu... Natural!
– Naturalmente... Chega mais aqui, Gorete! – sem tirar os olhos da “fantasia” – E pode me chamar de Fonso...
– Na mesa? Pra jantar à francesa?
– Não, mudei de ideia... Aqui no sofá! Vamos fazer uma festa à brasileira...
...Sooooolta a pagodeira, Gorete!
Jean Marcel- Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com
2 comentários
Jean, a cada texto seu eu me encanto mais e mais. Este é realmente delicioso, ágil, engraçado e, pra variar, super bem escrito. Parabéns, amigo!
Nossa, Cecília. Que delícia seu elogio. Valeu mesmo! Venha sempre!!!
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