|
Foto:Paula Giotto |
Carioca de 20 anos cria escola e bibliotecas em
Marajó
Estudante de Direito,
Luti Guedes transforma realidade dos moradores de comunidades ribeirinhas na
ilha ao Norte do Pará
Por William Helal Filho
Na segunda-feira(05/08/13)
foi um dia importante para a pequena comunidade de São Miguel, no município de
Portel, que fica na Ilha de Marajó, no Pará. Começou a funcionar uma escola
pública que vai atender a cerca de 150 moradores da região. São pessoas que,
até o semestre passado, viajavam duas horas de barco até o colégio mais
próximo. Muitos deixavam de estudar por causa disso.
Luti foi embora, mas
voltou. Várias vezes. Produziu cartilhas sobre direitos civis, levou uma
engenheira agrônoma que ensinou os moradores a cultivar hortas comunitárias,
ajudou a construir cinco bibliotecas (o acervo total já passa de dois mil
títulos) e, hoje, comemora a abertura do colégio, batizado de Imagine: Uma
Escola. Os professores são da prefeitura de Portel, mas Luti quer incentivar o
intercâmbio de docentes de outras partes do país.
— A escola tem alojamento
para receber professores de fora interessados em viver essa experiência.
Ninguém precisa ir à África para ver o que tem no Brasil — argumenta Luti, que
está em Marajó para acompanhar a abertura do colégio e matar a saudade dos
locais, que já o têm como parte da família.
A vida de Luti e dos
moradores de São Miguel não foi mais a mesma depois de 2009. O carioca estudava
no Colégio Santo Agostinho, que, anualmente, promove a excursão CSA Sem
Fronteiras, para levar alunos a comunidades na Ilha de Marajó. O objetivo é
apresentar outra realidade, para incutir neles o espírito de “solidariedade
cristã”.
No apartamento do
carioca, filho de um engenheiro e uma professora, tem TV de LCD com som
surround, ar condicionado e mais desses aparelhos comuns em residências de
classe média alta no Rio. Ao se deparar com pessoas vivendo sem sequer
saneamento básico ou luz, Luti não se conformou.
— Na hora, fiquei com um
sentimento ruim de impotência. O que um garoto de 16 anos poderia fazer pra ajudar
aquela gente? — conta ele.
Um ano depois, o
adolescente estava de volta, com um tio médico que prestou atendimento aos
moradores. Naquela segunda vez, Luti foi convidado para ser padrinho do
recém-nascido Luan. Foi o pretexto ideal para “ter que ir a São Miguel sempre
que pudesse”.
‘Os moradores são
agradecidos’
São quatro horas de voo
até Belém, mais 19 de barco até Portel e outras seis horas rio acima. Luti já
refez o trajeto mais de dez vezes. Sempre com uma mala estufada de livros e uma
mochila com algumas mudas de roupa.
A horta local é
administrada por mulheres de São Miguel, que, com isso, sentem-se valorizadas.
A cartilha de direitos informou sobre a importância de documentos de
identidade, o valor do voto e a utilidade de órgãos como o Ministério Público.
As bibliotecas do projeto “Sonho de papel” atendem a cerca de 400 pessoas de
três comunidades.
As séries “Harry Potter”
e “Jogos Vorazes” fazem o maior sucesso entre os ribeirinhos, assim como livros
de Fernando Pessoa e Monteiro Lobato.
— Tem gente que não
confia na capacidade dele, por causa da idade, mas o Luti já fez muito. Eu nem
gostava de ler, e hoje leio bastante. As crianças adoram. Os moradores são
agradecidos — elogia Andrei Pinheiro, de 20 anos, um líder comunitário de São
Miguel que virou fã da série “As Crônicas de Artur”, do britânico Bernard
Cornwell.
Em 2011, o universitário
fundou sua ONG, a Lute Sem Fronteiras. Para realizar seus projetos, Luti faz
vaquinhas entre amigos. Quando ele e os moradores de São Miguel resolveram
fazer a escola, a prefeitura de Portel concordou em ceder professores, mas
informou que não tinha dinheiro para a obra, orçada em R$ 10 mil. Metade desse
valor foi doado por Marcos Flávio Azzi, fundador do Instituto Azzi, que busca
investidores para trabalhos sociais. Para conseguir os outros R$ 5 mil, o
carioca fez uma lista de cem amigos para arrecadar R$ 50 de cada. Acabou
reunindo um total de R$ 16 mil. Tudo investido no projeto. A escola vai receber
alunos desde a creche até o Ensino de Jovens e Adultos (EJA).
— Quando me deparo com
uma pessoa que canaliza toda a energia para ajudar o próximo sem visar a nada
além do bem comum, me emociono, quero cooperar para que Luti se desenvolva cada
vez mais — elogia Azzi.
Professora do Santo
Agostinho, Kity Guedes, mãe de Luti, integrou o primeiro grupo de alunos e
professores a ir a Marajó. Na volta, reuniu recursos para fazer poços
artesianos no local.
— Depois, pensei:
“Pronto. Fiz minha parte”. No ano seguinte, o Luti foi a Marajó e, na volta,
não conseguia entender como não fiz mais por aquelas pessoas — conta ela.
O universitário, que este
mês parte para um intercâmbio na Universidade Pontifícia Comillas, em Madrid,
onde vai estudar Direito e Políticas Públicas, tem consciência de agente
transformador. Ajuda os ribeirinhos, mas também os incentiva a não depender
dele.
— São esses jovens que
transformarão o país e servirão de inspiração para muitos outros — elogia Vera
Cordeiro, fundadora da Associação Saúde da Criança, que conheceu Luti
recentemente.
Agora, Luti planeja
arrecadar dinheiro para construir um posto de saúde em São Miguel.
Alguém duvida?
A dura realidade
marajoara
Localizada na Foz do Rio
Amazonas, a cerca de 90km de Belém, Marajó mistura cenários paradisíacos e
problemas sociais graves. Dos 16 municípios da ilha, nove estão entre os cem
piores do Brasil, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH),
divulgado na semana passada. Dom José Luis Azcona Hermoso, bispo de Marajó, é
uma voz que tenta chamar atenção não apenas para o pouco acesso a educação e
saúde como também a ocorrência de crimes como tráfico de seres humanos e a exploração
de menores de idade. Ele vem acompanhando de perto o trabalho da ONG Lute Sem
Fronteiras, de Luti Guedes.
— Poucos têm coragem de
enfrentar a dura realidade marajoara. Luti combate a gravidade da situação com
cultura, leitura e educação. A comunidade precisa sair da mentalidade insular e
conhecer o universo dos escritores — elogia o bispo. — Um grupo de alemães veio
conhecer Marajó após a Jornada Mundial da Juventude, no Rio, e percebeu como
São Miguel se destaca em termos de desenvolvimento social. O Luti está fazendo
a diferença.
O carioca conhece o poder
das ferramentas que usa:
— As pessoas se tornam
vítima de tráfico de humanos por falta de opção. Elas são iludidas pelos criminosos.
Quero dar opção a elas.
O responsável por reunir
os recursos para a construção da casa com quatro salas de aula é um estudante
de 20 anos, que mora a cerca de 2,5 mil quilômetros de distância, na Gávea,
Zona Sul do Rio. Luiz Carlos Guedes, chamado de Luti pelos amigos, não tinha
relação nenhuma com os moradores de São Miguel até 2009, quando fez uma
excursão escolar para conhecer algumas comunidades ribeirinhas da ilha.
— Achei que estava só
indo a um lugar bonito fazer fotos. Mas, na viagem, eu chorava muito vendo as
condições dos moradores. Eram pessoas felizes, mas sem acesso a educação, saúde
e outros direitos básicos. Ninguém se importava com elas. Eu não queria
simplesmente ir embora, como se aquilo fosse uma visita ao zoológico. Decidi
fazer alguma coisa a respeito — conta o aluno de Direito da PUC-Rio.
Nenhum comentário
Postar um comentário