Ciranda de Sombras
Autor:
Silvério Duque
Editora:
É Realizações
Formato:
14 x 21 cm
Número
de Páginas: 128
Acabamento:
Brochura
ISBN:
978-85-8033-139-4
Lançamento:
2013
Ler
Ciranda de Sombras é algo como ler um memorial, é acompanhar a história íntima
de um homem por meio da sua relação com seus poemas preferidos e que lhe
apontaram o caminho a seguir e lhe amadureceram a pena. É, sem dúvida, uma obra
de formação, uma obra que narra a passagem do tempo. Assim, não parece ser mera
coincidência este livro começar com uma alegre narrativa da subida de algumas
crianças a uma serra (“...subíamos a Serra/como quem imitava a própria vida”) e
terminar com quatro elegias que desmbocam no poema final, no qual se lê: “Tudo
é memória”.
PROFUNDAMENTE
(por
Jessé de Almeida Primo*)
O
retorno de Bruno Tolentino ao Brasil, em 1993, com a publicação de seu quarto
livro, As horas de Katharina (Cia.
das Letras, 1994), mostrou às novas gerações o quanto a grande poesia, com seus
metros, formas fixas e opulência de rimas, é também contemporânea, e o quanto
as suas possibilidades não foram ainda esgotadas, tornando assim mais
confortável à situação daqueles para os quais a poesia deve a um só tempo
servir à forma, à riqueza de imagens e, principalmente, à língua.
Enfim,
um espaço foi aberto para que uma poesia sofisticada se manifestasse de modo
mais franco. Ao menos essa alcançou maior visibilidade.
Estamos
falando de uma geração cuja formação poética se deu quando o bardo carioca ainda
se encontrava na Europa, e que buscava inspiração numa poesia que de fato
conquistou a sensibilidade das gerações que a antecederam: Camões, Gregório de
Matos, Tomás Antônio Gonzaga, Florbela Espanca, Olavo Bilac, Guilherme de
Almeida, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília
Meireles, João Cabral de Melo Neto... Enfim, autores que renovaram a língua e o
mundo das formas a partir dos elementos oferecidos pela própria tradição, ou
descobriram nesses elementos possibilidades não suspeitadas, mas que uma vez
descobertas não havia como negar-lhes a naturalidade.
Na
Bahia, tive o privilégio de conviver com uma geração que se destacou mais pela
pesquisa das formas já existentes, dando-lhes desse modo continuidade, do que
pelo desespero de tirar uma forma do nada: a começar pela geração de sessenta e
setenta, como é o caso de Ildásio Tavares, com os belíssimos IX Sonetos da Inconfidência (“Meu
coração é de metal sonante/e se eu tivesse trinta corações/eu venderia todos”.
[1999]), Antônio Brasileiro, com Licornes
de Quintal (“São teus, meu pai, os frutos/ duramente/ não colhidos”.[1989])
e Roberval Pereyr com Amalgama
(“Entrei de costas na vida/e vi o passado morrer”. [2004]).
Num
lapso de 30 anos, e na geração que passou a conviver com a poesia tolentiniana,
não posso me esquecer de Patrice de Moraes, com o livro Eurótico (2005), em que o conteúdo, por vezes, fescenino encontra
sua melhor expressão não em versos ditos livres e numa construção indigente,
mas, ao melhor estilo Gregório de Matos, numa sintaxe bem construída em sonetos
impecáveis (“um texto de idioma universal/que assente seu império
lexical/fluente à proporção que seja lido”) e numa terça-rima exemplar
(“Sentindo o mastro lhe beijar a vinha/e vagarosamente introduzir-se,/ regia
com a batuta da espinha”); Nívia Maria Vasconcellos, que teve uma bela estreia
com o opúsculo Invisibilidade (2002),
no qual as sucessivas tentativas de definir o homem distribuem-se na forma
espiralada dos tercetos brancos e livres, seguido de Para não Suicidar (2006), uma série de contos sobre all the lonely people que não sabem where do they all come from, e Escondedouro
do amor (2008), no qual nos deparamos com poemas de inspiração hilstiana,
além de dísticos muito bem elaborados e que emolduram uma linguagem clara, um
fraseado limpo e elegante (“Descarto-me do olhar que me apresenta/o mundo que,
por vezes, me descarta”.); e Gustavo Felicíssimo, que, com Procura e outros Poemas (2012), encontra soluções bem inventivas
para a não menos inventiva forma fixa “retranca” criada por Alberto da Cunha
Melo, provavelmente a partir do soneto inglês, e pela qual dá voz ao Don Juan,
a partir da leitura de Tirso de Molina (“Desejo todas as mulheres/antes mesmo
de as conhecer”.).
Vindo
para São Paulo em 2007, tal qual alguém que recebe um grande presente, fui
apresentado a O Livro de Scardanelli
(É Realizações, 2008), de Érico Nogueira, um poeta que radicaliza a relação
entre o autor e seus modelos, realizando uma poesia original, com alto grau de
sofisticação (“A hora acorda, a altura se ilumina”), e sem medo de mostrar uma
origem nobre, a partir de emulações em que, mais precisamente, a partitura
formal de seus poetas preferidos servem ao propósito da sua – como é também o
caso de Dois, seu segundo livro, recém-publicado
pela É Realizações, em que As elegias romanas, de Goethe, e as famosas sequências
hoelderlinianas de Pão e Vinho são retomadas numa linguagem, dir-se-ia, mais
pop, i.e., despojada dos adornos neoclássicos do livro anterior, posto que nele
já despontassem os primeiros indícios do rumo que sua obra tomou (“Não quero já
de novo ser banal:/ ‘Ó sol etcétera’, ‘ó mar’, ‘ó céu’”.). Pouco tempo depois,
apresentado pelo mesmo Érico Nogueira, li o Cânone
Acidental (É Realizações 2010), de Marco Catalão, em que esse, seguindo
mais ou menos o esquema de Nogueira, utiliza a forma dos clássicos de língua
portuguesa para, entre outras coisas, dar voz ao homem cotidiano, atingindo
dessa forma um efeito inusitado e não raras vezes hilário: basta imaginar um homem
cotidiano reclamando do trânsito, da fila no banco, lamentando a derrota de seu
time com a prosódia e a sintaxe de Camões, de Tomás Antônio Gonzaga, Cecília
Meireles.... ou mesmo a expressar os delírios típicos do
maconheiro-cult-alternativo com o auxílio luxuoso de Olavo Bilac: “Vocês dirão:
‘Coisas de bicho grilo!/Ouvir estrelas, ver ETs’”.
Se
Bruno Tolentino criou uma situação mais confortável para aqueles que querem dar
continuidade à tradição do verso, por outra não exerceu sobre essa geração uma
influência de escola, afinal, como já foi dito, essa já escrevia quando ele
ainda se encontrava na Europa, de modo que são outras as suas referências e
seus modelos.
Silvério
Duque, o autor de Ciranda de Sombras,
que ora apresento neste prefácio, poderia ser visto como um caso à parte nessa
mesma geração. O intervalo entre o seu contato com a obra tolentiniana e
absorção dela na própria poética não foi muito longo. Ademais, a receptividade
a várias influências poéticas revela-se bastante franca, bastante direta, e,
paradoxalmente, valendo-se de várias vozes, encontra a sua própria voz, como
veremos mais adiante.
Este
é o seu quarto livro. Em 2002, publicou O
Crânio dos Peixes, um belíssimo diário de viagem no qual, como um rio
cabralino, as imagens são vistas como de um automóvel em movimento; em 2006, Baladas e outros Aportes de Viagem, um
passado que de tão recordado se torna um passado ideal, em que as sombras
cirandeiras agora são retomadas com mais substância; e, neste ano de 2010, A pele de Esaú, uma meditação pessoal do
episódio de Esaú e Jacó, dividida em duas partes, a primeira uma sequência de
sonetos mais diretamente relacionada ao episódio bíblico, e uma segunda em que
predomina uma sequência de poemas salmídicos com o leitmotiv rilkiano: “Todo anjo
é terrível”, a culminar num soneto finale em que o tema inicial é retomado como
numa suma.
Finalmente,
Ciranda de Sombras, obra essa
dividida em três partes, cada uma das quais é menos identificável por temas que
por tons específicos, mais precisamente movimentos musicais. Em cada uma delas
destaca-se a voz de alguns poetas que por sua vez revelam algo do espírito do
próprio poeta que os homenageia ou emula. Como já tinha observado a escritora
Nívia Maria de Vasconcellos no prefácio a Baladas: “Prenhe de epígrafes e
dedicatórias, este livro faz alusão de maneira expressa às intervenções
deliberadas que sofreu. Nele podemos perceber autores lidos por Silvério e a
leitura que efetuou de suas obras”. É o caso da voz bucólica, de dicção
sertaneja, na qual, destacando-se, entre outras, a de Eurico Alves Boaventura,
predominam as reminiscências infantis e algumas experiências extáticas
relacionadas a esses momentos; ou a voz camoniana lida pela poesia de Jorge de
Lima de Invenção de Orfeu.
Presenciamos o amanhecer revelando os contornos de uma paisagem árida por meio
do metro fortemente acentuado e de cores intensas que caracterizam os Sonetos Pavônicos de Sosígenes Costa; a
implacabilidade do tempo nos pentâmetros shakespeareanos; a poesia grega a
partir da lírica sáfica ou o auxílio luxuoso do mito; e entre outras vozes aqui
não citadas, a dicção e sugestões imagéticas da poesia de Bruno Tolentino e sua
relação com a arte pictórica, um autor cuja presença é uma das mais marcantes
nesta obra, seja pelas alusões diretas, seja pelo uso de recursos que, embora
já usados por outros autores, na poética tolentiniana acabam por se constituir
uma marca pelo uso recorrente: o alexandrino mais flexibilizado e por isso mais
próximo à respiração natural, um enjambement
mais elástico, os períodos que se prolongam em várias estrofes ou tom das
metáforas.
Se
por um lado nos deparamos com essa pletora de vozes, por outro elas vão se
afunilando numa única voz pessoal, que é a do nosso autor em questão. Autor que
conheci aferrado aos poemas expansivos e polimétricos de um Álvaro de Campos
sensacionista e com algo da poesia condoreira, mas que aos poucos definiu
melhor sua forma: tornou-se menos teórica e mais expositiva, como de resto é o
modo como a poesia mais bem se manifesta; sua linguagem foi adquirindo cada vez
mais concisão, tornou-se mais mineralizada, e tornando-se mais ajustável a uma
moldura, aproximou-se mais do objeto tratado, dando, dessa maneira, a impressão
de assumir o aspecto da matéria, melhor dizendo, da matéria em plena formação:
E assim seguia a procissão
como um só homem arrastando-se sobre
a colina
dissolvendo-se em muitos outros
homens
que iam habitar as paragens do morro
e os nossos olhos
que de longe avistavam o imenso
humano de couro
e lamentos a abraçar a capela.
Por
fim, ler Ciranda de sombras é algo
como ler um memorial, é acompanhar a história íntima de um homem por meio da
sua relação com seus poemas preferidos e que lhe apontaram o caminho a seguir e
lhe amadureceram a pena. É, sem dúvida, uma obra de formação, uma obra que
narra a passagem do tempo. Assim, não parece ser mera coincidência este livro
começar com uma alegre narrativa da subida de algumas crianças a uma serra
(“...subíamos a Serra/como quem imitava a própria vida;”) e terminar com quatro
elegias que desembocam no poema final, no qual se lê: “Tudo é memória...! Nesse
breve instante”, ecoando, por sua vez, o Manuel Bandeira de A velha chácara, de Ovalle, e de uma obra em prosa, de teor memorialista, como O itinerário de Pasárgada, uma das mais belas páginas de crítica já
escritas no Brasil, e dos versos com que encerro esta apresentação e que
constituem ademais uma ciranda de sombras:
Hoje não ouço mais as vozes daquele
tempo
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Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
*Jessé
de Almeida Primo é crítico literário e autor de A Linguagem da Poesia (Tulle, 2007).
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