Dicas para a criação de personagens
na ficção
Marcelo Spalding
Depois
do sucesso da coluna 3 dicas para escrita criativa, resolvi publicar com
exclusividade no Digestivo Cultural algumas dicas de criação literária da minha
Oficina de Criação Literária Online.
Para
começar, escolhi um dos temas mais instigantes da ficção, a construção de
personagens. Muitas vezes, a primeira ideia que nós temos é de uma personagem
que queremos criar. Não é por acaso, nesse sentido, que tantos livros e filmes
têm no título o nome do protagonista (Frankstein, Dom Casmurro, Dom Quixote,
Batman, Peter Pan.).
Há
diversas técnicas para construção da personagem e diversas tipologias das
personagens. A mais simples e útil para começarmos a pensar tecnicamente em
nossos personagens é a que distingue as personagens planas das personagens
esféricas. A terminologia vem de Edward Morgan Forster, citado por Antonio
Cândido em A Personagem
de Ficção.
Personagens
planas são aquelas que não mudam com as circunstâncias e são facilmente identificados
na narrativa. Em geral, são coadjuvantes, mas há muitos protagonistas
(especialmente em histórias maniqueístas) que comportam-se de forma plana:
super-heróis, vilões, princesas, bruxas. A personagem plana é aquela que é
sempre boa, é sempre má, é sempre apaixonada, é sempre sacana. Não há variação
de caráter, ele não hesita. Nos casos mais radicais, essas personagens são
meros estereótipos que funcionam na narrativa como parte do cenário (o mordomo,
o ladrão, a vizinha gostosa). No humor e nas histórias infantis esse tipo de
personagem costuma fazer muito sucesso. Talvez essa seja uma das explicações do
sucesso permanente de Chaves.
Personagens
esféricas: são as personagens modernas, capazes de surpreender de maneira
convincente. É o herói que tem medo, raiva, rancor, é o vilão que mostra sua
face humana, é a esposa romântica e apaixonada que olha para o vizinho ao lado.
Segundo Cândido, a marcha do romance moderno foi no rumo de uma complicação
crescente da psicologia do personagem; deste ponto de vista, poderíamos dizer
que a revolução sofrida pelo romance no século XVIII consistiu numa passagem do
enredo complicado com personagem simples para o enredo simples (coerente, uno)
com personagem complicada. Basta compararmos o Ulisses na Odisseia de Homero
com o Ulisses de Joyce. Ou o Super-Homem com o Batman.
É
interessante notar, nesse sentido, que mesmo nas narrativas infanto-juvenis há
uma maior complexidade na elaboração dos personagens. Em Shrek, por exemplo, as
personagens clássicas, estereotipadas, são satirizadas, dando lugar a um ogro
como herói e a outra como princesa. Em Os Incríveis, os heróis são proibidos de usar
seus poderes e vivem como uma família de classe média. Em Monstros S/A, são
exatamente eles, os monstros, os protagonistas da história. Isso sem falar nas
sombrias versões juvenis deChapeuzinho Vermelho e Branca de Neve.
Por
outro lado, o grande erro na construção de um personagem é o maniqueísmo.
Originalmente, o termo remonta a uma filosofia religiosa sincrética e dualística
que divide o mundo entre Bem, ou Deus, e Mal, ou o Diabo (Santo Agostinho, por
exemplo, a princípio fora influenciado pelas ideias maniqueistas, mas terminará
por combatê-las).
Em
suma, hoje dizemos que uma obra maniqueísta é aquela que divide as personagens
em bons e maus, sendo os bons sempre muito bonzinhos e os maus, sempre muito
maus. As personagens, assim, são sempre planas, nunca complexas. Os exemplos
mais tradicionais encontramos nos blockbusters hollywoodianos e nas novelas da
Globo, que chegam a ter o núcleos dos bons e o dos maus.
Ocorre
que, sem entrar em discussões sociológicas ou psicológicas, na vida real nós
não somos apenas bons ou apenas maus, até porque sendo assim não
sobreviveríamos nesse mundo por muito tempo. Em geral, as pessoas têm medos,
receios, preconceitos, ansiedades, e transmitem isso em pequenos detalhes,
lutando para fazer o bem, mas naturalmente comportando-se de forma duvidosa vez
que outra. Não estou falando que as pessoas seriam capazes de matar, mas
tampouco seriam humilhadas e mal tratadas sem sequer levantar a voz ou
transformar o choro em raiva, como acontece em tantas cenas de novela.
Dessa
forma, um texto feito de forma maniqueísta não é verossímil, pelo menos desde
meados do século XVIII. Sendo assim, a não ser que de forma planejada e
proposital, evite enredos maniqueístas e protagonistas planos. As exceções
clássicas são a comédia e as obras para o público infantil, mas vale refletir
sobre por que as crianças hoje se identificam tanto com o Shrek e tão pouco com
o príncipe, os jovens apreciam tanto com o sombrio Batman e tão pouco o belo
Super-Homem.
Um
exemplo de construção verossímil da personagem, embora maniqueísta, é o já
citado Peter Pan. O menino pode voar, mas só se tiver pensamentos felizes, além
de ser fundamental a presença da fada Sininho. É a partir desses dois elementos
que Peter Pan, soprando o pó de pirilimpimpim em Wendy, poderá voar com ela e
seus irmãos. Peter Pan, assim, pode voar, mas enfrentará diversos perigos, pois
não é imortal, não tem super-poderes, não é invisível. Se de uma hora para
outra se tornasse, haveria uma quebra na relação de confiança com o espectador.
E o mais interessante, nesse caso, é o final melancólico, quando Peter Pan
acena para Wendy do lado de fora da janela de sua casa, alijado daquele mundo
dos humanos que crescem: o contrato ficcional foi mantido, Peter Pan é o menino
da Terra do Nunca, ainda que os demais meninos perdidos tenham ido morar com a
família de Wendy.
Outro
exemplo da literatura/cinema que consegue mesclar realidade e ficção com
relativa destreza é Harry Potter, série capaz de arrebatar primeiro as
crianças, depois essas crianças crescidas e agora elas já como leitores maduros
e universitários. Já na primeira cena vemos o menino procurando a estação sete
e meio do trem, se não me engano, para entrar no mundo dos bruxos. Suas magias
dependem de sua varinha, e Potter só pode voar com a vassoura ou ficar
transparente com a capa, elementos que vão guiando o leitor/espectador ao longo
de toda a série.
A
regra de ouro na construção de histórias fantásticas, portanto, é a
verossimilhança. Dos conflitos, do cenário e especialmente das personagens.
Marcelo Spalding
é formado em jornalismo e mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS,
professor da Oficina de Criação Literária da Uniritter, editor do portal
Artistas Gaúchos, autor dos livros 'As cinco pontas de uma estrela',
'Vencer em Ilhas Tortas', 'Crianças do Asfalto', 'A Cor do Outro' e
'Minicontos e Muito Menos', membro do grupo Casa Verde e colunista do
Digestivo Cultural. Recebeu o Prêmio AGES Livro do Ano 2008 pelo livro
'Crianças do Asfalto', categoria Não-Ficção, e o Prêmio Açorianos de
Literatura em 2008 pelo portal Artistas Gaúchos. Site: www.marcelospalding.com.
Esse texto foi originalmente publicado no site: http://www.artistasgauchos.com.br/
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