Mia Couto e a saudade que
nos constitui
"Antes de nascer o
mundo", de Mia Couto: a ficção poética do autor e o tema da saudade. A
saudade dói em todos nós, mas como seria nosso mundo se não a sentíssemos?
Já dizia Caetano Veloso,
na famosa "Língua", que "só se pode filosofar em alemão".
Pois aqui coloco uma nova frase (que também é famosa, e praticamente provada
linguisticamente): só se pode sentir "saudades" em português, já que
a palavra só existe como tal em nossa língua.
E já que, falando em
Língua, "a poesia está para a prosa assim como o amor está para a
amizade", conversaremos aqui sobre uma prosa poética, ou um um
amor-amizade, que toca principalmente no tema da saudade.
Mia Couto é moçambicano de
origem, vencedor de prêmios internacionais de literatura, famoso por
"Terra Sonâmbula", seu primeiro título de grande expressão. Leitor de
Fernando Pessoa e Guimarães Rosa, sua prosa é poética assim como a deste
último, e sua obra é povoada por um mundo fantástico, que mostra sobretudo a
magia da natureza, dos homens, da terra.
A literatura clássica em
língua portuguesa, por mais realista e contida que seja, tem como
característica exaltar algumas peculiaridades do que dá sentido ao mundo para
seus falantes.
Em "Antes de nascer o
mundo" (editado pela Cia. das Letras), Mia Couto apresenta uma história
ocorrida em terras além do mundo, narrada por um menino: “Eu vivia em um ermo
habitado apenas por cinco homens. Meu pai dera um nome ao lugarejo.
Simplesmente chamado assim: “Jesusalém”. Aquela era a terra onde Jesus havia de
se descrucificar. E pronto, final.”
Jesusalém era a terra onde
habitava Mwanito, o narrador desta história, e sua família. Nesta terra, haviam
se isolado esses cinco homens, fugindo do passado e de todas as lembranças que
lhes pudessem causar dor. Assim ao menos o pai imaginava que seria quando tomou
essa decisão. A terra "onde Jesus havia de se descrucificar". Seria
mesmo esta a terra da salvação dos homens? Um mundo habitado somente pelo
presente paralisado?
Afastar-se da dor, negar
as lembranças, seria essa a solução para aquilo que não conseguimos controlar e
que nos causa angústia, essa dor no peito que não passa?
Os personagens de Mia
Couto não possuem história vivida, não estão inseridos no correr da vida. Em
seus livros, o rio simboliza o tempo, simboliza o contínuo da vida. Os rios não
corriam na terra de Jesusalém. Os personagens tanto estavam afastados do resto
do mundo quanto de si mesmos. Retirar o passado é quase como retirar essa
identidade, esse saber de si, o sentir-se parte desse todo de possibilidades e
corredeiras que é a vida.
O que fomos, o tempo, é
quase todo o sentido de nossas vidas. A saudade é essa expressão do que fica em
nós depois de se recuperar a memória, de se resgatar a rota do rio. É aquela
coisa boa de saber que tudo e todos que se foram nos constituem hoje, e que não
mais têm volta, como as águas do rio. É a certeza de saber que o passado pode
ser honrado, e revivido de novas formas.
Não se vive apenas de
saudades, mas não se vive com saudades sem dor. A dor da perda é revivida a
cada lembrança, mas há certeza de que o que perdemos ficou em nós, de alguma
maneira. E os falantes das outras línguas, não sentiriam a "saudade"?
Você pode "miss a thing" em inglês, você pode "manquer quelque
chose" em francês, mas a saudade é um sentimento que não tem tradução. Ela
une nossas almas de brasileiros, portugueses, moçambicanos, angolanos... É uma
dor que dá sentido a quem somos, constituindo o tecido que abarca nosso mundo
da lusofonia.
Fonte:
Artigo da autoria de
Stella Vilar.
Stella estuda psicologia,
mas não passa o tempo todo analisando ninguém. Não é mineira, mas sente como se
fosse. Acha que uma das melhores coisas é sentar e papear, seja papo cult ou
não..
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