Paul Auster no deserto [José Castello]
- hoje prisioneira de um asilo em Vinhedo _, colocando em risco a própria vida, me salvou. Nos meus pesadelos, que talvez provenham dessa experiência traumática de infância, as areias se movem, mas não são pantanosas. São secas, como os versos de João Cabral, e penetram em minhas narinas, entram em meus ouvidos, lutam para tomar posse de meu miserável corpo. Ainda assim, e mesmo horrorizado, não consigo deixar de admirar a beleza do deserto em que me atolo. A areia imensa que me mastiga, que bela, ainda que horrenda.
Com meu amigo e irmão Flávio Stein, converso sempre sobre os ensaios do catalão Rafael Argullol, um filósofo (como Auster) interessado no vazio, no abismo, nos desertos e no nomadismo. Acredito que somos todos nômades e por isso carrego sempre comigo pelo menos um livro. Livros: neles me agarro para não afundar, para não perder o norte, para que as areias de meus pesadelos não me traguem, para não perder o controle sobre meus nervos. Nos aviões, durante as turbulências, leio poemas. No cotidiano, durante o vazio da tristeza, apego-me aos romances. Meu querido Flávio se tornou meu irmão porque dividimos a mesma crença: a de que a literatura, no mundo indecifrável de hoje, se tornou matéria de salvação. Pelo mesmo motivo, admiro tanto a literatura de João Gilberto Noll _ um escritor que tenho na conta de uma alma gêmea: porque seus personagens nunca sabem onde estão, porque eles desconhecem o caminho que seguem, ignoram os motivos de seus esforços. Têm a alma deserta _ e, por isso mesmo, pronta para a descoberta e a transformação.
A potência do deserto: lembra-me Paul Auster que o deserto se move comigo. Adverte-me de que disso não escaparei. E faz dessa advertência um poema, onde me fornece um esboço de saída: "tornar-se/ o onde estás". Chegar a si.
Cair em si. "Ser-se". Desertos realizam essa manobra de retorno, que nos traz de volta a nós mesmos. Desertos _ estranho isso que agora me sai _ se parecem com espelhos. Em sua paisagem opaca nada mais nos resta do que nos observar. Assim fiz durante a travessia do deserto do Seridó, enquanto lia os poemas de Paul Auster entre um devaneio e outro (e tentava ler também os ensaios de Silviano Santiago para me agarrar a alguma consistência). Ali, a paisagem dava as regras. A paisagem me dirigia, o desolamento dava as cartas.
Enjôo nos carros, preciso tomar Dramin, ou não consigo ler sem que náuseas atrozes me possuam. Sou assim desde menino. Fala-nos Auster de uma "palavra-meteoro, rabiscada pela luz". O que ela rabisca, o que deixa cair? É o deserto, o próprio deserto _ sertão, desertão _ que cai sobre mim. Que me empurra de volta para mim mesmo. No mundo de hoje, tudo nos puxa para fora. Os desertos, ao contrário, nos empurram para dentro. Desertos são espelhos tenebrosos, que não nos poupam nem do pior, nem do melhor. E talvez o mais difícil seja isso: aceitar o melhor. Na literatura, ele se guarda "nos livros". Mas, e quando não estamos a ler? O pior e o melhor é tudo o que temos. Na travessia dos desertos, eles se espalham, se desenrolam como tapetes perversos, nos arrastam de volta em nossa direção. O Seridó - esta é a verdade _ me devolveu a mim mesmo.
Quando lhe descrevi minha experiência, meu amigo Livio Oliveira, poeta potiguar nascido no sertão, me olhou de um jeito comovido. Na apreciação do deserto nos irmanamos. Testemunhas um do outro, apesar da diferença de idade, dali procedemos. Nasci no Rio Comprido, logo me levaram para Copacabana, mas sempre carreguei um deserto dentro de mim. Deserto que a literatura (Auster) acolhe e a que dá sentido. Deserto, no fim, que é a nossa origem e o nosso destino. Amigos me emparam: Livio, Tácito, Nelson, Demétrio. Eles me ofereceram suas mãos para abrandar a dor da travessia. O deserto continua, mas sou muito grato a todos eles.
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