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Nelson Mandela (circa 1950) |
A música de Madiba
Confesso, em primeiro lugar, que o teor destas anotações
relativas a Nelson Mandela e a uma série de coisas que no momento cercam sua
figura, será um tanto aleatório e subjetivo; seria descabido tentar fazer as
vezes do historiador ou do sociólogo. Meus pontos de vista sobre o assunto são
parciais, isto é, por óbvias razões (ao menos para mim) tomo o partido de
Mandela. De resto, com um rápido lance de dedos no teclado do computador ou na
tela do tablet, o interessado estará às portas da Wikipedia e aí encontrará
muita informação sobre Mandela.
Ezra Pound disse em algum lugar – se a memória não me
engana – que todos os homens deveriam se unir para cantar o Ulysses de James
Joyce. Com o pedido entusiasmado, Pound procura dar conta da importância de tal
obra, tanto para o seu tempo, como para o que viria a seguir. Trocando duas ou
três palavras da frase de Pound, ela caberia à perfeição para traduzir meu
sentimento e o de muitos outros em relação a Nelson Mandela e sua simbologia.
Embora o anúncio de sua morte já estivesse sendo esperado há meses (sérios
problemas de saúde fizeram com que fosse hospitalizado já no final de 2012), a
confirmação do fato foi avassaladora. Todos, homens e mulheres, negros e
brancos, ex-jogadores de futebol, astros da música pop, celebridades,
religiosos, filósofos, twitteiros, casados e solteiros, capitalistas e
marxistas, enfim, todas as instâncias do universal Homem se uniram para cantar
Mandela.
O ocorrido gerou um falso problema. Para os menos
informados, a sensação de que Mandela, graças também à profusão de signos que
as diversas mídias fizeram brotar ao redor dele, se apresentava como algo
incontornável, isto é, não importava para onde o sujeito se voltasse, aquele
senhor negro, de carapinha branca, estaria lá. Então, para os retardatários que
tiveram de tomar pé do que estava acontecendo assim meio às pressas e a todo
custo, a melhor anedota que circula nas redes sociais a este propósito é um
tweet, provavelmente fajuto, que diz: “Agora todo mundo virou fã do Nelson
Mandela, mas duvido que conheçam uma música dele”. Com efeito, é preciso
conhecer a música de Nelson Mandela.
Diante da interpretação sincera e seletiva de uns e do
compartilhamento por inércia de outros, fico a pensar. Quando uns e outros se
põem a desfiar elogios desmedidos a respeito do trabalho ou da biografia de um
negro, sempre me preparo para o pior. Por favor, que os eventuais objetores não
invoquem aqui a baixa estima, nem suponham que estou na defensiva, nada disso.
O problema não é bem esse. Segundo Friedrich Nietzsche “o comentário
demasiadamente elogioso produz mais indiscrições que a censura”. As louvações,
na verdade, têm fundo culposo e se efetivam sem que possamos lhes prever as
consequências: desvelam a imprudente face do preconceito. Para compensar toda
uma série de episódios aniquiladores do ânimo de muitas personalidades negras,
fundamentais para a cultura e o pensamento universais, o senso comum carrega
nas tintas da apologia purgativa, tanto sobre aqueles que parecem ter vivido
vidas que poderiam ter sido, mas que não foram, quanto os que escaparam à
condenação da subalternidade. Parodiando o adágio relativo à vingança, pode-se
dizer que tal espécie de elogio é um prato que se oferece frio ao seu maior
interessado. Por essa razão, Cruz e Sousa é o Dante negro; Leônidas da Silva, o
Diamante Negro; Elizeth Cardoso, a Divina, e assim por diante. E, agora,
Mandela é o campeão da paz. O preto-velho pacifista. Mas em respeito à sua
história, essa imagem edulcorada e fraca – que só serve pra fazer o sinhozinho
branco dormir tranquilo –, essa imagem mesma precisa ser revertida.
Antes de tudo, é bom lembrar que até há bem pouco tempo
Mandela ainda fazia parte de uma lista de terroristas feita pelos órgãos de
segurança dos EUA. Como escreveu Idelber Avelar (professar na Tulane
University), trata-se de uma grande balela associar Nelson Mandela à prática da
“resistência pacífica” ou da “não-violência”, ainda mais considerando como pano
de fundo a luta antiapartheid na África do Sul dos bôeres mais renitentes.
Mandela foi um dos fundadores do braço armado do Congresso Nacional Africano, o
Umkhonto we Sizwe (a Lança da Nação). Diante do tribunal que pretendia
condená-lo à morte, Mandela argumentou: “no começo de junho de 1961, depois de
análise longa e angustiada da situação sul-africana, eu e alguns colegas
chegamos à conclusão de que, já que a violência neste país era inevitável,
seria errado e irreal que os líderes africanos continuássemos a pregar a paz e
a não violência, num momento em que o governo reagia com a força a nossas
demandas pacíficas”. Enfim, na luta pelo fim do apartheid, Mandela lançou mão
de todas as estratégias de que dispunha, às vezes apoiou enfrentamentos
não-pacíficos, outras vezes, lutas pacíficas. Idelber tem razão quando afirma
que nenhum líder revolucionário escolhe “violência”ou “não-violência”, assim
abstratamente, divorciado do contexto em que está imerso, como se se tratasse
de fazer uma escolha baseada num maniqueísmo sem ponto de retorno.Viver como
homem humano não é nem um pouco fácil. Embora não pareça possível restaurar
algumas coisas, nossas interpretações estão sempre dispostas a fazer o mundo
recomeçar. A questão é que, aparentemente, ganhamos mais na ficção. Em seu
livro Nove ensaios dantescos, Jorge Luis Borges propõe algo me parece
importante referir aqui: “No tempo real, na história, sempre que um homem
depara com diversas alternativas opta por uma, eliminando e perdendo as outras;
não é assim no ambíguo tempo da arte, que se assemelha ao da esperança e ao do
esquecimento”.
Ao contrário de outros líderes revolucionários do
século 20, Nelson Mandela teve, felizmente, uma vida longa e, em certa medida,
logrou mais vitórias do que seus iguais. É sabido que muitos dos representantes
dessa linhagem, onde Mandela assume posição de relevo, morreram precocemente e
de forma violenta. Por meio de narrativas, o mais das vezes, hagiográficas,
dedicadas a esses líderes – mortos em meio ao salto da mudança –, podemos notar
que o desaparecimento deles acaba se tornando mais incômodo para o poder contra
o qual investiram do que quando estavam vivos. Mas estamos convencidos de que
isso se converteu num clichê, seja na lógica dos eventos históricos, seja na
estrutura, por exemplo, das tramas fílmicas.
Com sua morte, Nelson Mandela, inclusive pelo fato de
também ter sido um estadista, serve, infelizmente, de oportunidade para que
políticos ou os chamados homens públicos e líderes mundiais, neste momento, se
pronunciem além do tolerável sobre sua biografia. Cada um deles aproveita para
beliscar o que quer que seja no banquete funerário. Discursam sobre questões
para as quais jamais dispensaram o menor interesse em suas vidas públicas, mas
que, por outro lado, foram questões tão importantes para Mandela que por várias
vezes, em momentos cruciais de sua luta pelas liberdades, chegou a dizer que se
fosse preciso daria a vida por elas. A condição totêmica de Mandela faz com que
se submetam a semelhante constrangimento; temerariamente se aventuram a opinar
sobre um homem que os achataria sem mais, se fosse possível lhes conceder
alguma comparação com ele. Pois o refinamento em que por acaso esbarram, quando
confinam com a poderosa simbologia de Nelson Mandela, lhes promete aquilo de
que são privados por serem demasiadamente canastrões.
Ronald Augusto
nasceu em 1961 no estado do Rio Grande do Sul. O escritor atua em
inúmeras áreas: é músico, letrista, ensaísta e possui ainda um trabalho
significativo no âmbito da literatura. Como poeta alcançou
expressividade no cenário nacional e até mesmo mundial, de tal forma que
suas produções foram publicados em revistas literárias, bem como em
antologias, dentre elas destacamos: A razão da Chama, organizada por
Oswaldo de Camargo (1986), a revista americana Callaloo: African
Brasilian Literature: a special issue EUA (1995), a revista alemã
Dichtungsring Zeitschrift für Literatur, e outras.
www.poesiacoisanenhuma.blogspot.com
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