Livro
de cabeceira
Como
todos sabem, o Arnoldo tem no livro, literalmente, o seu melhor companheiro.
Tanto assim que defende a tese de que ele, o livro, deveria ser do gênero
feminino, para que se sentisse mais à vontade de passar as noites na sua
companhia. Afinal, seu ritual de aproximação, que antecede a leitura
propriamente dita, é quase uma preliminar amorosa, dada a expectativa e a
quantidade de preparativos que realiza para criar o clima ideal.
Ao
chegar em casa com alguma obra recém-adquirida, seu coração começa
invariavelmente a bater num ritmo mais acelerado, denunciando o que está por
acontecer. Será que vai ser bom? Será tudo o que espera? Que histórias esconde?
Conseguirá desvendar seus mistérios? Nossa, como o Arnoldo fica ansioso a cada
novo livro! Apesar de toda a experiência acumulada, parece sempre tratar-se da
sua primeira vez. Contudo, apesar da expectativa, não se lança aos prazeres da
leitura como um adolescente. Ao contrário, coloca-o sobre o balcão da copa,
reservando-o para mais tarde. Sabe que tem todo o tempo do mundo. Assim,
dedica-se sem pressa à elaboração de uma comida que complete o sabor do livro.
Não contente, abre um vinho tinto, separa um cálice que nunca viu seu par, pois
é sempre pego no singular, e vão todos para o seu quarto: o livro, o jantar,
uma garrafa de vinho argentino ou chileno, o cálice de cristal já lascado por
tantas idas e vindas e, comandando a festa com uma excitação juvenil, o
Arnoldo. O que se seguirá daí para frente acontece da mesma forma há anos, mas
nem por isso tem perdido o encanto.
Ele apaga a luz principal, acende o abajur
de cabeceira, serve o primeiro cálice para si e, aí sim, começa a leitura. As
páginas iniciais são as mais importantes. Afinal, depois de tantos anos de
experiência, basta o contato com os primeiros parágrafos de uma obra para
avaliar a sua qualidade. Durante todo o tempo a televisão do quarto fica
ligada, mas sem som, com o claro propósito de humilhá-la diante do rival. De
vez em quando, num virar de página ou no fim de mais um capítulo, o Arnoldo dá
uma olhadela no que está passando no televisor, somente para ter a
oportunidade, ato contínuo, de dar um suspiro de desdém e voltar sua atenção
para “quem” realmente o encanta.
O
vinho é apreciado somente na sua companhia e como coadjuvante. No mais das
vezes toma o cuidado de não exagerar na dose, para não embotar seu raciocínio,
degustando, portanto, somente a quantidade suficiente que o incentive a
mergulhar sem reservas na história que está sendo revelada. Mesmo assim, acaba
sempre adormecendo com o livro no colo ou dividindo com ele seu travesseiro;
ou, ainda, acomodado sobre o peito, sem poder precisar no outro dia em que
ponto da leitura parou. Na manhã seguinte, surge quase sempre um sorriso tímido
ao olhar para o lado e ver, na desordem do quarto, os vestígios de uma noite
particular. Horas depois, já no trabalho ou onde quer que esteja, as lembranças
do que leu, com suas histórias e tramas, invariavelmente passarão a assombrar a
realidade, fazendo-o desejar que o tempo passe logo, permitindo-lhe retomar a
leitura na primeira oportunidade. Tudo o que quer é poder voltar para o seu
mundo paralelo, muito mais fascinante.
Se
por um lado o Arnoldo percebe o poder que os livros exercem sobre ele, entende
também que a recíproca é verdadeira. Assim, quando está numa livraria diante
das dezenas de prateleiras divididas por assuntos, sente-se tão poderoso como
se fora um sultão no seu harém particular, podendo escolher entre gêneros,
tamanhos e estilos. Todos à sua disposição e à espera de sua decisão final. E
foi dessa forma, com a experiência que só o tempo traz, que o Arnoldo passou a
identificar as características, nuances e humores de cada obra, compreendendo
que é a companhia que deve ajustar-se ao programa e não o contrário. Desde
então escolhe os livros conforme a hora e o local em que deseja saboreá-los. Os
de poesia, por exemplo, são “casos passageiros”: ficam no bolso de fora da sua
pasta ou no banco de trás do seu carro, para serem “saboreados” no
congestionamento do trânsito ou na ante-sala do dentista. Com esses somente
“fica” ocasionalmente, sem aviso prévio, dedicando uma atenção parcial, quase
sempre limitando-se à leitura de uns poucos trechos aleatórios ou algumas
páginas salteadas. Depois, ficam esquecidos, abandonados em lugar ignorado.
Com
os best sellers da moda também tem uma relação difícil, variando entre o amor e
o ódio. Muito mais ódio do que amor! Para o Arnoldo, a leitura é um ato
pessoal, íntimo, quase um segredo sendo revelado ao pé do ouvido. Por isso,
entende que a perspectiva de estar lendo algo em conjunto com milhões de outras
pessoas subverte esse conceito. Pior ainda se a história virou filme... Aí, ou
ignora-os deliberadamente ou fala mal, só por despeito. Lê-os, é verdade, mas
por pura obrigação! Às vezes, quando a pressão da mídia é muita, o livro está
encabeçando a lista dos mais vendidos e não se fala em outra coisa, tem o
prazer sádico de anunciar que não o leu, mesmo sendo mentira, só para chocar o
interlocutor. O Arnoldo comprando best seller? Impossível! Recebe-os de amigo
invisível ou como presente de aniversário!
Os
vendedores já sabem, pois o conhecem há anos: quase nunca o Arnoldo compra o
livro de primeira. É extremamente seletivo e tímido! Prefere namorá-lo por
dias, às vezes até por semanas, visitando-o quase diariamente onde quer esteja
sendo vendido. A cada visita, sob os olhares condescendentes do funcionário,
novos trechos são lidos, em pé, próximo da estante, aplacando ou alimentando a
ânsia de adquiri-lo, até que finalmente a decisão de levá-lo vença a
resistência. Às vezes, porém, desiste na última hora, encantando-se por alguma
outra leitura próxima que lhe tome a dianteira na preferência. Nesses casos,
muito depois, talvez meses mais tarde, acaba voltando e levando, envergonhado,
o livro então preterido.
Como
todo homem, o Arnoldo tem lá suas fraquezas, deixando-se levar pelo momento.
Uma vez se interessou por um livro só por causa da “casca”, negligenciando seu
conteúdo. A capa era de fato muito bonita, de um material diferente, brilhoso,
colorido, moderno. Tinha na lombada o título grafado com letras em alto relevo,
cujas cores mudavam conforme o ângulo de observação. Não resistiu, foi amor à
primeira vista! Comprou por impulso, sem ao menos folheá-lo. Não tinha sequer
ideia do conteúdo. Aliás, jamais soube, colocou-o na estante da sala em posição
de destaque e nunca mais o tirou de lá.
O
Arnoldo também é de fases. Ultimamente vem lendo somente romances históricos.
Antes disso estava na fase dos policiais, mas os crimes, mistérios e
perseguições começaram a tirar-lhe o sono. Já no início do ano foi diferente:
decidiu ler de uma vez, em sequência, todos os livros do Neruda. Um depois do
outro, sem descanso. Chama isso de “imersão”, que justifica dizendo que tal
esforço, que para ele é um prazer, serve para aproximá-lo do autor. E de fato,
quem o conhece já sabe que intimidade é o que busca com seus livros.
No
princípio, por exemplo, era contra deixar qualquer marca que o maculasse. Nem o
seu nome se atrevia a escrever na contracapa. Depois, com o tempo, notou que o
livro aceita essas interações. Desde que, evidentemente, seja algo inteligente,
sagaz, irônico ou até mesmo sarcástico. Jamais um lembrete ou uma observação
sem importância. Acima de tudo, que a anotação seja algo pessoal. Isso o
deixará único. Talvez tenham saído da gráfica centenas de milhares iguais a ele
a cada edição. Mas com suas novas marcas, certamente será singular, carregando
consigo os vestígios dos que o conheceram. Desde então o Arnoldo descobriu o
prazer de adquirir livros já “rodados”, lidos e relidos por outras pessoas, o
que torna provável, numa tarde ensolarada de sábado, encontrá-lo fuçando sebos
à procura de obras esquecidas. Não estará nunca, é bom que se diga, em busca de
nobres preciosidades ou obras antigas e arrogantes. Seu objetivo são os livros
genuinamente “usados”, na acepção vulgar da palavra. É impossível para ele,
quando encontra um livro verdadeiramente “judiado”, não pensar em quantas camas
já repousou aquele espécime, por quais mãos já passou, a quem já impressionou,
fez suspirar ou até, quem sabe, emocionou às lágrimas. Às vezes sente-se até
enciumado ao encontrar, sem esperar, uma anotação a lápis ao lado de um
parágrafo. Uma vez até desistiu da leitura ao se deparar com uma frase do livro
sublinhada por algum antigo dono. Não tinha entendido o pensamento do autor e,
ao vê-la sublinhada por outro leitor que provavelmente a achou genial,
julgou-se inferiorizado. Definitivamente – avaliou – não estava à altura de tal
livro.
Mas
se por um lado não despreza o livro apesar da sua quilometragem, de outro, não
há deleite maior do que saber que será o primeiro a “possuí-lo”. O Arnoldo
sente uma satisfação machista em inaugurá-lo, ser o primeiro a virar suas
páginas. Saber que nunca, jamais, ninguém antes dele, folheou aquele espécime.
Quando o faz, inspira profundamente, deliciando-se com o cheiro púbere que suas
páginas exalam. Por isso, se o desejo é de comprar um livro novo, prefere os
que vêm fechados, lacrados com aquela fina película transparente a envolvê-los.
Afinal, nunca se sabe... Não quer em hipótese alguma levar gato por lebre!
Para
o Arnoldo, os livros trazem diferentes surpresas. Uma delas, que o encanta de
maneira particular, é quando, por defeito da guilhotina no momento da
impressão, vem “premiado” com algumas páginas coladas no canto da folha,
impedindo sua leitura. Na visão do Arnoldo isso o valoriza, deixando-o único.
Parece até que aquelas páginas são especiais, contendo um segredo a ser
revelado. E caso tenha sido emprestado ou comprado de “segunda mão”, revela o
embuste ou desinteresse do falso leitor que o antecedeu. Páginas coladas? Que
delícia rompê-las com uma régua de plástico ou com a lâmina de uma tesoura
aberta.
Incomodado
o Arnoldo fica é com aquelas tiras de papel plastificado, com calendário ou
propaganda da editora, que as livrarias insistem em acrescentar ao livro
vendido para servir de marcador. O Arnoldo nunca gostou delas, prefere usar a
própria dobra da contracapa, enfiando-a por entre as folhas. Assim, sente-se
orgulhoso quando tem de passar a usar a contracapa de trás, indicando que sua
leitura já transpôs a metade do livro. Algumas vezes, porém, usa o método de
fazer “orelhinha” na página específica onde parou, pendendo-a para um lado ou
para outro, conforme a necessidade. Ao vê-las depois, no livro, os vincos das
dobras desfeitas deixadas para trás, percebe de quantos dias precisou para
devorá-lo por inteiro.
Como
são escolhidos com cuidado, são raros os livros que o decepcionam. Alguns, é
verdade, começam sem sal, quase o fazendo desistir. Talvez por culpa da
história ou do estilo com que as palavras se juntam. Mas depois acaba sempre se
acostumando e, não raro, surpreende-se por estar preocupado diante da iminência
de chegar à última página. Aliás, chegar ao fim é sempre um trauma que leva
dias para superar. Como o fim de novela televisiva para a dona de casa, um
livro também deixa um vazio no seu dia. Saber que os personagens de quem se
tornou íntimo cumpriram seu ciclo, viveram suas histórias e agora o deixarão
sozinho, produz nele uma sensação de melancolia, algo como despedida em estação
de trem. Imagina os personagens no último vagão, indo embora, “felizes para
sempre”, provavelmente sem intenção de voltar. A menos, é claro, que o autor
decida escrever uma continuação. Mas não, melhor assim! No fundo, ele bem sabe
que no cinema, na literatura e na vida as continuações nunca são tão boas como
a primeira parte!
Jean Marcel-
Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois
adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas,
romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com
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