O Tempo e a Pressa
Quando todos dormiam no sossego e aconchego de suas
camas eu estava acordada. Enquanto os homens tolos pensavam ser donos de si e
de seus desejos eu já planejava o seu dia de amanhã, prevendo que seriam os
seus próprios lobos sem que se dessem conta.
Por minhas próprias mãos dei forma e vida a dois filhos
igualmente dependentes um do outro, como gêmeos siameses. Antes que cada um
deles abrisse os olhos para o novo dia eu os nomeei. E escolhi os seus nomes de
maneira que nenhum homem se esquecesse. Seriam um binômio quase tão perfeitos
quanto antagônicos: Tempo e Pressa.
Ao parir esses dois, aceitei, de bom grado, acolher em
meus braços outros filhos: o Antes e o Depois, que cresceriam ao lado do Tempo,
da Pressa e dos homens. Outros filhos viriam, eu sabia. E aceitei cada um a seu
tempo, compondo o ritmo do mundo, o ritmo de toda a minha criação.
Deixei que os homens despertassem e se lançassem em sua
correria diária em busca de meu querido Tempo, que já perdiam quando se
enlaçavam com a Pressa.
Ao homem faltava um tanto de discernimento para
perceber que a irmã gêmea do Tempo era quem mais concorria para o afastamento
entre eles. A Pressa levava os homens rumo ao sem-Tempo em passos cada vez mais
largos.
Sou ré confessa. Revelo que criei ao mesmo tempo a
salvação e a perdição de todo aquele que se pega desatento na vida. Para quem
tem a Pressa como companhia, acaba faltando o Tempo e, para todo Antes não
planejado, sofre-se um Depois de incertezas.
Diante de minhas criações, os homens aprenderam a se
virar e a criar. E a cada nova criação se voltavam a mim dando-me novos filhos
e filhas, os quais recebi e acalentei. Um deles, uma jovem, na verdade, eu
chamei de Saudade, que nasceu bem no dia em que o Tempo percebeu-se diante da
distância entre os homens.
A Saudade era moça de aparência doce, quase lívida, que
sabia bem causar dor, mas sabia também ser leve. Ela gostava de passear nos
sonhos, de visitar as infâncias, de abraçar os amigos perdidos pelo Tempo e a
Pressa. Gostava de sentar nas janelas dos corações e ficar ali, jogada em um
canto. Às vezes flertava com a Tristeza. E era teimosa. Só saia do coração
quando recebia um abraço ou via sua irmã Alegria chegando.
Ah, esses homens... Abriam mão de sua inocência por
pouco. Perdiam-se em descaminhos por caprichos vãos, mas eram incansáveis.
Buscavam meios de recomeçar sempre. Tanto que criaram o Perdão. Tão nobre
quanto difícil, mas sublime ao ser bem recebido.
Ah, esses homens, de olhos curiosos, atentos, fixos,
com suas retinas sempre muito bem preparadas para observarem as histórias que o
mundo pintava... Eles ainda me surpreendiam... Tanto que criaram o Amor. E esse
veio a ser o filho que abracei com o maior cuidado, com a maior admiração.
O Amor era multiforme, multicolorido, adaptável ao mundo
inteiro e capaz de habitar tantos lugares quanto era desejado. Incansável.
Destemido. Quase uma semente que é capaz de morrer para renascer com mais
força, dando frutos que se multiplicam. E talvez fosse mesmo uma semente.
Dessas aladas, que se espalham e alcançam lugares inimagináveis.
Enquanto os homens dormiam, eu os admirava. Eles já
haviam se perdido e se reencontrado. Eles tinham tudo para desistirem logo que
acordassem, mas persistiram.
Eram os aprendizes eternos e se tornaram professores.
Eram criaturas e acabaram por ser criadores. Tornaram-se fortes diante de cada
fraqueza.
Cresceram diante de cada obstáculo e, por mais que o Tempo passasse
rápido enquanto eles tinham Pressa, aprenderam a lidar com cada filho meu: com
a Saudade, com a Tristeza, a Alegria, o Perdão e jamais esqueceram do meu filho
predileto, o Amor, que gosta mesmo de caminhar próximo da Esperança.
Enquanto os homens dormiam eu me fiz como a mãe da
criação, como mito que atravessou os séculos e os velava, garantindo sua
segurança no conforto de suas camas, orgulhando-me de como foram capazes de ser
muito melhor do que poderiam. Enquanto eles dormiam eu percebi o quanto os
quero bem e o quanto nada é pronto e acabado.
(Para ler ouvindo Una Mattina de Ludovico Einaudi)
Dy Eiterer.
Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. Edylane é Edylane desde 20 de
novembro de 1984. Não ia ter esse nome, mas sua mãe, na última hora,
escreveu desse jeito, com "y", e disse que assim seria. Foi feito. Essa
mocinha que ama História, música e poesia hoje tem um príncipe só seu,
seu filho Heitor. Ela canta o dia todo, gosta de dançar - dança do
ventre - e escreve pra aliviar a alma. Ama a vida e não gosta de nada
morno, porque a vida deve ser intensa. Site:Dy Vagando
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