Caio,
Clarice e os robôs do Facebook
Um aplicativo cria novas frases a partir de posts
antigos de qualquer um – incluindo os escritores mais populares da internet
Se a principal função da mente humana hoje em dia é
atualizar perfis no Facebook, logo seremos substituídos pelas máquinas. E o
pior: estamos gostando disso. A diversão do momento é o aplicativo What Would I
Say?, que reúne todos os posts e comentários já feitos por um usuário e usa
esse material como base para produzir novas frases com o mesmo tom. Basta
entrar no site what-would-i-say.com e, depois de alguns cliques, você terá
criado um robô com a sua personalidade, capaz de gerar centenas de posts em
poucos minutos.
Eu desconfiava da capacidade do aplicativo, mas um
colega de redação me incentivou a experimentá-lo. Como um orgulhoso
representante da geração #selfie, decidi testar a novidade no meu próprio
perfil. Entreguei todo o meu histórico digital para a máquina. Em troca, ela me
brindou com algumas frases longas e desconexas, como “A campeã moral do
American Idol para ler mais rápido” e “A coluna de hoje é sobre a coluna de
hoje”. Pensei em desistir da brincadeira, mas reconsiderei. Talvez a máquina
estivesse reproduzindo a minha personalidade e eu, de fato, não fizesse sentido
na maior parte do tempo. Em nome da justiça, persisti.
Poucos cliques depois, o robô me surpreendeu com
algumas provocações. “Por que entrar numa rede social?”, perguntou ele, numa
das frases. A crítica ao narcisismo continuou em seguida. “Eu na balada, a foto
bonita, só vou me mostrar nesse aplicativo”, disse ele. Reparei que muitos
amigos seriam capazes de emitir essa frase. A máquina concorda. “Muitos amigos
têm pouca utilidade na vida”, disse. Foi quando notei que meu colega estava
certo. O aplicativo havia conseguido captar minha personalidade.
Logo comecei a compartilhar no Facebook os posts da
minha contraparte robótica. As reações foram perturbadoras. Minha mulher chamou
o robô de arrogante. Encarei como um insulto, já que sua personalidade era
obviamente a minha. Uma amiga disse que ele era tão pessimista quanto eu.
Lamentei pela máquina, mas concordei. À exceção desses dois comentários, só
houve elogios. Dezenas de amigos interagiram com o robô, curtiram seus posts e
riram de suas piadas. Foi quando percebi que ele era mais popular do que eu.
Passei a admirá-lo. Ele diz frases geniais que eu jamais diria, como “Bora
comprar todas essas coisas que os senhores mencionaram”, ironizando o
consumismo de meus amigos, e “Neste sábado farei uma passeata em defesa da
minha vida, acho!” – uma crítica sutil ao instinto de sobrevivência do ser
humano e a sua vontade de se rebelar. Isso sem falar em pílulas quase poéticas
de pessimismo, como “Seis meses de dedicação à falência” e “Fracassou em Freud
e vivem de pão”. Tive de me render. O robô havia me superado. Se ele estivesse
escrevendo este texto, certamente o faria melhor do que eu.
Humilhado pela tecnologia, comecei a pensar nas
implicações literárias do aplicativo. Se ele conseguira produzir frases
brilhantes com base nos meus posts no Facebook, reconhecidamente uma
matéria-prima de péssima qualidade, o que ele poderia fazer com textos de
grandes autores da literatura nacional? Num experimento que deixaria o Doutor
Frankenstein orgulhoso, alimentei o aplicativo com o conteúdo de perfis que
publicam frases de Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector, os escritores
brasileiros mais populares nas redes sociais.
As primeiras frases da versão cibernética de Caio
Fernando Abreu foram uma decepção: monólogos longos e incompreensíveis. Ciente
dos talentos ocultos do aplicativo, contive meu julgamento inicial. Talvez os
textos desconexos fossem uma crítica muito sutil da máquina aos leitores do
mundo digital e à sua dificuldade para decifrar textos profundos. Talvez os
posts não fossem desconexos e eu, com a falta de foco típica da minha geração,
fosse incapaz de decifrá-los. Dei uma segunda chance ao Caio Fernando robô e
fui recompensado. Logo ele produziu frases que não fariam feio em nenhum perfil
no Facebook. “O amanhã é uma voz lá no fundo, esmagado pela superficialidade.”
“Bem que podia ser agora, um amor novinho em si mesmo.” E a minha favorita:
“Nós vamos conversar, sair bem, mas a morte é inevitável, portanto normal.”
Clarice Lispector, reprocessada pelo aplicativo, também se saiu bem, com frases
como “O que falo nunca é o que se pensava que era amor. E não é a solidão”, e
“Ouve o meu silêncio. O que era amor.”
Os céticos dirão que tudo não passa de uma grande
palhaçada, e que essas frases são apenas pedaços recortados e colados de textos
antigos. Os posts desconexos com que deparamos muitas vezes ao usar o
aplicativo seriam a prova de que ele não tem nenhuma inteligência, para não
falar em bom gosto. Apesar de representar a espécie humana, devo defender as
máquinas. O aplicativo está apenas em sua primeira versão. Pode melhorar muito
assim que aprender um pouco de gramática e entender a diferença entre frases
possíveis e impossíveis. Também poderia analisar as reações a suas postagens no
Facebook, compreender o que nos agrada e tentar nos oferecer mais disso. Logo
serão indistinguíveis dos originais.
Mesmo agora, em seu estado evidentemente precário, o
aplicativo consegue produzir frases muito mais convincentes do que os milhares
de textos apócrifos que usuários do Facebook atribuem a Caio Fernando Abreu ou
Clarice Lispector. Assim como Luís Fernando Veríssimo ou Arnaldo Jabor, a dupla
de autores assina na internet inúmeros posts que jamais escreveram, por pura má
fé dos humanos. Ao menos as máquinas admitem que são máquinas. Também têm um
pouco de senso de estilo. São muito melhores do que nós. Em pouco tempo vão
adquirir a capacidade de escrever textos maiores, ou até livros inteiros. Nós,
com a distração típica dos nativos digitais, acharemos tudo genial, curtiremos
e compartilharemos. Não era a literatura que esperávamos para o futuro. Será
que é a literatura que merecemos?
Fonte:
2 comentários
Excelente texto. Apavorante em conteúdo, mas ótimo. Resta torcer para que não seja esse o futuro da literatura. Merece mais que isso a nossa musa.
Excelente texto. Apavorante em conteúdo, mas ótimo. Resta torcer para que não seja esse o futuro da literatura. Merece mais que isso a nossa musa.
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