Pés estranhos
Nunca fui do tipo de mulher que cura tristeza comprando
sapatos. Portanto, tenho poucos pares. Outro dia, li em algum lugar que as
mulheres são loucas por sapatos, que compram e nem conseguem usar todos. Fiquei
a pensar na minha relação com tal acessório. Sim, porque nem de longe usamos
sapato para proteger os pés, tal como nossos antepassados homens das cavernas.
Pelo contrário, sempre achei que principalmente as mulheres têm uma relação
sado-masoquista com os próprios pés. Antes era minha mãe, agora é meu marido
que diz: “você sempre compra sapatos iguais!!!”. Antes era minha mãe, agora é
meu marido que diz: “Use um salto!!!”. Hei mundo!! Eu odeio sentir dor!! Me
deixem em paz com meus sapatos iguais e sem salto!!!
Pensando em tudo isso, descobri que o buraco é mais
embaixo. O problema não está na minha relação com os malditos sapatos, mas com
meus pés. Sim, com meus pés. O ódio já corroeu qualquer possibilidade de
reconciliação entre nós. Durante toda a minha vida, foi como se esse par assimétrico
sempre estivesse a bolar um plano maligno para me sabotar. Nasceram desiguais,
o direito é maior que o esquerdo e, tal como gêmeos bivitelinos, que as mães,
ainda assim, insistem em vestir igualmente, eu sempre oprimi o direito para que
usasse vestes iguais às do esquerdo. Eles sempre gostaram de estar livres, são
achatados e pisam levemente torto no sentido externo. Herança paterna. Como
forma de expressar a dupla revolta, desde a infância sempre relutaram contra as
sandálias. Ainda que fossem de uma tira só, ambos remexiam-se, parmesionavam,
constrangendo-me todas as vezes em que eu precisava tirar o calçado para entrar
na casa de alguém. De repente um leve odor de queijo ia tomando conta do lugar.
As pessoas passavam os dedos na ponta de seus narizes afilados, por pouco não
precisavam buscar uma máscara protetora. Discretamente o dono da casa abria as
cortinas e janelas, aromatizava o ambiente.
Eu tentava sempre deixá-los livres em casa, plantas
espalhadas sobre o piso gelado. Era minha forma de tentar algum tipo de
reconciliação. Mas sempre era preciso vestir-lhes os tênis para as aulas de
educação física. Então, começaram as unhas a fazerem seus motins. Suave e
imperceptivelmente iniciaram uma caminhada lenta e cortante em direção à carne
dos dedos. O que mais sofria era o dedão. Arroxeava-se durante meses, corroído
pela dor que lhe era imposta pelos malditos cantos das unhas. Acabo de me
lembrar que pés assim chamam mais atenção do que pés normais, então o pé dos
outros sempre encontrava um jeito de pisar no meu dedão encravado, e o sangue
jorrava em gotas, lágrimas de sangue era o que meus pobres dedos choravam.
Sim, eu usava meias, talco, limão, pimenta, cocô de
galinha. “Isso evita maus odores”. Pra mim não adiantavam. Meus pés, tal como
dois gambás acuados, exalavam sempre seu perfume característico. Suavam.
Melecavam. Doíam. Certa vez, uma gatinha de estimação, após socar o focinho
dentro do tênis que estava de bobeira no canto da sala, teve uma paralisia
facial de alguns segundos. Mas não era somente esse meu problema com meus pés.
Eu os odiava.
Na adolescência, época em que todas as minhas amigas
aventuravam-se nos saltos, lá estava eu usando sandálias de couro, compradas na
feira Hippie do centro da cidade. Eles não reclamavam. Nunca os coloquei em
evidência, mas acho que era assim que gostavam de viver. Das vezes em que fui
obrigada a usar salto, depois de cinco minutos, tarsos e metatarsos
enozavam-se, enroscavam-se. Flanges retorciam-se. Hálux virava do avesso.
Calcanhares arrancavam sua própria pele, num ritual macabro de auto-lesão. Eu
tirava o salto e, então, como que num gozo, os pés relaxavam e inundavam o
ambiente com seu odor de queijo. Eles me odiavam.
Eu não sabia
como poderia ter um namorado. “Vamos assistir um filme na minha casa amanhã?”.
Claro que sim, dizia eu. E passava a noite em claro, imaginando como poderia
namorar sem tirar os sapatos. “Venha, deite aqui no tapete pra ver melhor o
filme. Pode tirar os sapatos, fique à vontade”. Não, estou bem assim, sinto
frio nos pés. E quando o sujeito queria ir pra um estágio mais avançado, eu
fugia, como o diabo da cruz. E nenhum namoro ia adiante. Para poder arrumar um
marido, tive que inventar um fetiche por pés calçados: venha meu amor, mas não
vamos tirar os sapatos, acho lindo pés calçados. Só depois do casamento tirei
os sapatos perto dele. Tarde demais para pedir o divórcio: “Como vou explicar
para o seu pai que não quero mais estar casado com você por causa dos seus
pés?”.
Como posso ter muitos sapatos? Pra que eu ia querer ter
muitos sapatos? Por que cargas d’água eu ia querer presentear esses meus
estranhos inimigos?
De uns tempos pra cá descobri um jeito de
neutralizá-los. Adotei o uso de desodorante nos pés e salvei meu casamento. Mas
tenho pesadelos frequentes e acordo todos os dias à espera de um novo ataque.
Isloany Machado -
Psicóloga clínica (CRP 14/03820-0) Psicanalista, membro da Escola de
Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fórum do Campo Lacaniano de
MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo
Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora
da ciência e costuradora de palavras por opção.
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