Sobre Sheherazades, Batmans e demônios
No costumeiro papel de juiz, júri e tribunal
conjugados, mídia adota cinismo como forma de ideologia
Nas últimas semanas, dois episódios ocorridos no Rio de
Janeiro não saem dos noticiários, dos papos de botequim, das redes sociais, dos
jornais de 0,70 centavos: o adolescente negro assaltante que foi “justiçado”
por jovens de classe média no Flamengo, que apanhou e foi algemado nu por uma
tranca de bicicleta junto a um poste; e a morte do cinegrafista da Rede
Bandeirantes de televisão por um rojão lançado por dois jovens “black-blocs”,
na manifestação contra o reajuste das passagens de ônibus.
Trata-se de dois fatos que não guardam semelhança entre
si, a não ser pela “odisseica” cobertura midiática, em seu papel costumeiro de
juiz, júri e tribunal, conjugados num mesmo corpo institucional. Se em relação
ao primeiro episódio vimos distintos setores sociais defenderem o
“justiçamento” contra a bandidagem e clamarem pelo exercício da violência por
conta do Estado, que nos “desprotege”, em se tratando do segundo caso o que
estamos presenciando é a condenação sumária dos jovens envolvidos no ato, antes
mesmo de serem apurados os fatos. Cometeram um assassinato e responderão por
isso, mas antes mesmo da “fala do especialista” da vídeo-esfera (SEMERARO,
2006) analisar as imagens, já estavam sentenciados.
Nada de novo no front midiático tupiniquim, que numa
primeira mirada encontrou seus Nardoni e Richthofen da vez e garantiu pauta
para os próximos dez dias. Todavia, um segundo olhar sobre o ocorrido mostra
que a prisão de Fabio Raposo e Caio Silva de Souza não é apenas mais um
julgamento espetacular dos mass media, na acepção debordiana, mas a “revanche”
que tanto queria o establishment burguês, “alvejado” pela opinião pública com
suas próprias balas de borracha, lançadas à exaustão pela polícia militar em
Pinheirinho ou no Junho Rebelde.
O caso do “pelourinho do Flamengo”, onde um negro pobre
“pagou” por seu crime ao velho estilo Batman #(o herói aristocrata que não
mata, mas pune os infratores e redime aquela sociedade corrupta e desigual) em
Gotham City, teve seu ápice midiático no comentário autoral de Rachel Sheherazade1
(em 04/02/2014), apresentadora do SBT Brasil, que destilou o mais raivoso ódio
de classe (assim como fez em relação aos rolezinhos2, organizados por
“arruaceiros”), ao estilo TFP (Tradição, Família e Propriedade), contra o
“marginalzinho de ficha mais suja que pau de galinheiro” e em defesa dos
cidadãos “de bem”, lançando a campanha “Adote um bandido” para os militantes de
direitos humanos e a campanha “Legítima defesa coletiva” para as “vítimas de
bem” da indefesa sociedade civil.
O vídeo já tem quase um milhão de visualizações do
Youtube (entre entusiastas e críticos), mas talvez seu “direito de resposta”,
no mesmo SBT Jornal3 de dois dias depois (06/02) exponha de forma mais crua o
conservadorismo atroz de nossa sociedade, quando a jornalista – apresentada por
seu colega de programa como uma mulher cristã e mãe – diz que é uma ferrenha
crítica da violência, que está ali todo dia “batendo na violência”, defendendo
as “pessoas de bem” que estão “abandonadas à própria sorte” e “desesperadas”.
Quem ouve as palavras de Sheherazade #– que em Mil e uma noites sobrevive após
ludibriar o sultão por noites seguidas – sem saber do que se trata pode achar
que se refere a algum jovem da periferia de uma grande cidade, provavelmente
negro, provavelmente sem perspectivas. Só que não! O programa termina dizendo
que o que deve prevalecer sempre é a liberdade de expressão. É o cinismo como
forma de ideologia na manutenção da lei dos “de cima”. O direito de resposta na
verdade é o endosso do agressor, que não apenas reitera o que disse como zomba
daqueles que o criticaram.
Como diz Zizek (1996): “O modo mais destacado dessa
‘mentira sob o disfarce da verdade’, nos dias atuais, é o cinismo: com
desconcertante franqueza, ‘admite-se tudo’, mas esse pleno reconhecimento de
nossos interesses não nos impede, de maneira alguma, de persegui-los; a fórmula
do cinismo já não é o clássico enunciado marxista do ‘eles não sabem, mas é o
que estão fazendo’ agora, é ‘eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas
fazem assim mesmo’”.
Por sua vez, o episódio da morte do cinegrafista da
Bandeirantes representa mais uma cruzada midiática contra setores radicalizados
da sociedade civil, que desde junho do ano passado trouxeram para a cena
política pautas sociais que, em outros momentos, passavam ao largo dos
noticiários televisivos, com destaque para o preço das passagens dos
transportes que deveriam ser públicos. A morte de Santiago de Andrade foi a
revanche esperada e ensaiada há meses pelo main stream da mídia brasileira,
ávida por “desmascarar” os black blocs, tratando-os como uma organização
homogênea, institucionalizada, porém controlada de fora.
Após o rojão ferir fatalmente o funcionário da Band,
foi rápida a construção de um consenso que costurava entre si: a suposta
associação dos envolvidos com o deputado estadual do PSOL-RJ, Marcelo Freixo,
opositor ferrenho do governador Sérgio Cabral, do prefeito Eduardo Paes e da
grande mídia; a “ficha suja” de Fabio e Caio, com passagens pela polícia e
participação em outras manifestações (pasteurizando de forma magistral todas as
pessoas que ousam se manifestar de forma mais incisiva, como por exemplo
aquelas que ocupam prédios públicos ou enfrentam o cerco policial); a defesa de
que a nação brasileira e os brasileiros são pacíficos e que a violência de
alguns é esporádica, injustificável e intolerável, forjando o “mito da
não-violência”, que apaga a “realidade das divisões sociais e da luta de
classes, reduzindo sua emergência à situação de meros momentos enlouquecidos da
sociedade” ((CHAUÍ, 2006).
O nó final dessa costura ideológica é a recuperação da
chamada Teoria dos Dois Demônios, adaptada ao contexto atual. Muito conhecida
de sociedades latino-americanas que passaram por ditaduras civil-militares no
século passado, notadamente a Argentina, tal concepção representa um
“malabarismo retórico” (SAFATLE, 2011) de quem crê que esquerda e direita
cometeram “excessos” e que, por isso, deixar as coisas no passado seria o
melhor a ser feito. De um lado, um demônio popular, terrorista de esquerda que
despertou outro demônio, militar, terrorista de Estado. Em meio a isso tudo
estaria a atemorizada sociedade civil, inocente e ingênua, que assiste
impassível ao drama da violência (IRAMAIN, 2009-2010).
Num contexto atual, como de praxe, a mídia encena o
acontecimento, forjando e manipulando simulacros do real (CHAUÍ, 2006), onde o
fato cede lugar à sua versão, sintonizada com os interesses dos grupos
dominantes do país. Os Dois Demônios retornam com vigor, sob nova roupagem (não
deixando coisas no passado), com os manifestantes – que “precipitam as coisas”
– e o Estado, agora “democrático”, nos dois polos opostos, e a frágil e
não-violenta sociedade civil no meio do tiroteio. Apaga-se dos noticiários a
questão da violência como recurso sempre à mão do chamado Estado de Direito –
Estado de Exceção para os subalternos e paradigma de governo dominante na
política contemporânea (AGAMBEN, 2004) –, que salvaguarda a propriedade privada
burguesa e mantém a desigualdade como pressuposto
Na atual cena política brasileira Sheherazades, Batmans
e Demônios estão à solta, em meio à planejada resposta-revanche dos grandes
meios de comunicação a Junho de 2013, colocada na rua no momento oportuno,
tendo como alvos personagens reais e lutas reais, que na “mídia-esfera”
aparecem como simulacros, mas no mundo concreto são ameaças reais à hegemonia
que a mídia representa.
Eduardo Rebuá é historiador e doutorando em Educação
pela UFF, professor da Unigranrio.
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