Uma conversa com Klester Cavalcanti, preso e torturado na Síria [Stéfanie Medeiros]
Klester Cavalcanti, no Mercado de Damasco, um dia após sua libertação da Penitenciária Central de Homs.
O hotel ficava bem no centro, onde as coisas aconteciam, as pessoas se encontravam, namorados brigavam na calçada e reconciliavam-se nos diversos restaurantes. Dentro do estabelecimento, umas das paredes era feita de vidro, onde, no meio, escorria água, dando a impressão de que estava sempre chovendo. A recepção com dois sofás, duas poltronas e bem iluminado passava a sensação de sofisticação. A plaquinha com os preços dos quartos, que só tem de “luxo” para mais, indicava que não era exatamente barato ficar ali.
Cumprimentou os dois e foi logo sentando no sofá grande, sem cerimônias. “E então, o que vocês querem saber?”, perguntou aos repórteres. Nenhum deles esperava que não houvesse tempo para “diplomacia”, mas Klester foi direto ao ponto. Nem estavam com o bloquinho em mãos.
Klester, com pouco mais de 40 anos, queria ver o lado humano da guerra da Síria. “Mas que guerra tem lado humano?”, você pergunta, debochando. A guerra deste país começou em março de 2011 e continua até os dias de hoje.
No primeiro ano de conflito, 20 mil pessoas já haviam morrido e 1,5 milhões estavam refugiadas. Em maio de 2012, a cidade mais afetada era Homs, a terceira maior do país. E era para lá que Klester queria ir. E exatamente para onde o governo da Síria não queria que ele fosse.
Depois de toda a burocracia de conseguir um visto de imprensa de uma semana, de listar os equipamentos que ia levar consigo e pegar o avião em direção ao maior conflito da atualidade, Klester chegou em Damasco. No seu passaporte, um recado manuscrito em árabe e português: “Procurar o Ministério das informações imediatamente após a chegada”. Não era uma mensagem difícil de interpretar. Klester sabia que queriam colocar alguém do governo na “sua cola”, de forma a acompanhá-lo durante a viagem inteira e impedi-lo de ver a guerra. Por isso, depois de passar a primeira noite em Damasco, pegou o primeiro ônibus do dia seguinte em direção à Homs, que estava a duas horas de distância.
Já em Homs, pegou um táxi e circulou pela cidade, onde viu exatamente o que esperava, só que pior: escombros, centros comerciais destruídos, prédios altos com as estruturas derretidas pelo calor das bombas e fumaça. Enquanto estava por lá, uma bomba explodiu nas proximidades. Depois de uma discussão acalorada com o motorista, Klester conseguiu convencê-lo a se aproximar. Foi quando ele fez a foto abaixo:
Klester ligou para um contato que tinha na Embaixada, que falava árabe e português. Ele contou o que estava acontecendo e pediu para que este homem explicasse a situação ao oficial. Indicando o celular ao militar, Klester tentou explicar que tinha alguém que esclareceria o ocorrido. “Ok”, disse o oficial, pegando o celular. Mas ao invés de levá-lo em direção à orelha, desligou o aparelho e o colocou no bolso. “Agora a coisa ficou feia”, pensou Klester. De fato, nas próximas duas horas, o jornalista foi jogado no chão e torturado psicologicamente, pois de minutos em minutos algum militar vinha gritar e apontar uma arma para ele. Mas as coisas não estavam prestes a melhorar. Klester, sem receber nenhuma explicação do porquê foi preso ou para onde estava sendo levado, sentia que, naquele momento, seria melhor morrer logo. “É muito angustiante. Eles vêm, gritam, apontam armas pra você. Aí saem e você se acalma. E ai voltam e começam tudo de novo. Chegou uma hora que eu preferia morrer logo e de forma rápida”.
Mas o momento em que Klester não só “achou”, mas teve a certeza de que ia morrer foi quando chegou na delegacia. Um jovem militar o conduziu para uma escadaria e, apontando o fuzil para sua nunca, o mandou descer. Esta cena, aliás, é a primeira descrita no livro “Dias de inferno da Síria”, onde Klester narrou toda a viagem. Nele, no primeiro parágrafo do primeiro capítulo, o jornalista diz:
“Pela primeira vez na vida, tive certeza de que iria morrer. Não era apenas uma sensação ou um receio. Eu estava absolutamente certo de que aqueles seriam meus últimos segundos de vida. Descendo os degraus de uma escada no corredor escuro e tão apertado que só permitia passar uma pessoa por vez, sentia o cano de um fuzil empurrando minha nuca, forçando-me a continuar. A arma estava nas mãos de um rapaz de pele clara, rosto quadrado e imberbe, nariz largo e cabelos lisos e curtos, cuidadosamente penteados a base de gel. Aparentando não mais de 25 anos, ele usava um agasalho Adidas, branco e com tiras vermelhas. Além do fuzil, carregava duas pistolas presas à cintura”.
Enquanto descia a escada, Klester viu que no final, era apenas uma parede. Não tinha nada. “Pronto, é aqui que eu vou morrer. Esse cara vai me executar e meu corpo vai apodrecer aqui”, pensou. Ele fechou os olhos e, vagarosamente, continuou descendo. Em certo momento, ouviu um barulho e sentiu algo na cabeça. “Pronto, estou morto”. Mas logo em seguida, sentiu um empurrão. “Pô, acabei de morrer e já tem gente me empurrando?”.
“Você sentiu medo?”, perguntou a jornalista que o entrevistava. Mas na verdade, o que Klester sentiu segundos antes de “morrer” não foi medo, mas paz. Ele estava onde queria estar, fazendo o que queria fazer. Não tinha assuntos pendentes ou palavras não ditas. Se morresse ali, morreria realizado. “Entendo. Acho que eu me sentiria assim”, disse o outro repórter. Klester estava sorrindo, com um brilho nos olhos. Sentia orgulho de sua viagem e, por pior que tenha sido, estar preso no meio da guerra, próximo à bombardeamentos e tiroteios era, na verdade, a realização de um sonho.
De volta à cena, o que Klester achou que era um paredão, na verdade era uma porta de ferro que dava acesso à uma delegacia improvisada. Lá, ele foi obrigado a assinar um documento em árabe sob a ameaça de ser cegado com um cigarro. O oficial, aliás, queimou o rosto de Klester com um toco acesso, de forma a mostrar que não estava brincando. Sem escolha, o jornalista acabou assinando o documento de conteúdo desconhecido. Ele passou a noite algemado numa cama de ferro e, no dia seguinte, preso em uma penitenciária.
Ficou preso por seis dias. Teve acessos de raiva e momentos em que não queria mais ter esperança. Pensou que ficaria preso para sempre. Mas, para sua sorte e sanidade mental, pode ficar com sua mochila. Apesar de seus equipamentos terem sido confiscados, um bloquinho de anotações e uma caneta foram considerados inofensivos. E estes objetos simples e sem valor para a maioria das pessoas foi o que salvou Klester da insanidade. Um de seus “irmãos de cela” falava inglês. E, através dele, conheceu os outros e fez amizades. Passava o dia inteiro escrevendo. Quando batia a angustia, seus novos amigos cuidavam para que ele comesse e o animavam como podiam, um deles imitando o Michael Jackson. Certa noite, sem cobertor, Klester dormia encolhido e tremendo de frio. Um dos presos pegou o cobertor que tinha e cobriu Klester. Foram dias difíceis, mas foi ali que Klester encontrou o que estava procurando: o lado humano da guerra.
Seu livro, redigido em pouco mais de três meses, é situado no meio da guerra, mas não é sobre macropolítica, estatísticas e mortes. É, na verdade, sobre pessoas. Pessoas que tinham empregos, como qualquer outra, mas por conta da guerra, foram pegas fazendo coisas que o governo sírio não aprovava. Foram presas e ficaram longe da família. Foram torturadas. Mas mesmo assim, não perderam a humanidade. Klester era de outra religião, de outro país, falava outra língua, mas naquela cela, todos se cuidavam, independente de raça, cor e credo.
Serviço
O livro “Dia de inferno da Síria: O relato do jornalista brasileiro que foi preso e torturado em plena guerra”, publicado pela editora Benvirá em 2012, com prefácio de Caco Barcellos, pode ser adquirido clicando AQUI.
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