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"Sob os escombros" |
Dia de morte
por Cinthia Kriemler
Olho o cão aos meus pés
e me apercebo de como são iguais os sinais em nossas vidas. Os pelos brancos,
o arquejar que vem do coração
que falha, o corpo lento que ora cambaleia ao andar, ora recolhe pelas frestas
da janela um pouco de sol para dar alento aos ossos. Tem sido sempre assim,
desde que nos acompanhamos um ao outro.
Tento refazer o passado,
retocando-lhe os traços
com o lápis da memória, mas, a despeito do esforço, não consigo ser, ao
mesmo tempo, personagem e narrador. E a intenção esvai-se num pedaço de bolo que me distrai o
paladar. Não preciso de lembranças.
Não as desejo. Faz um bocado que perdi de mim a menina que declamava poemas e
deslizava ao piano dedos de Bach e de Chopin. Que se foi de mim a moça que sorria com os olhos e
não queria dormir para se aproveitar das horas. No ontem, havia a certeza de
um tempo para errar. E havia sussurros nos ouvidos, sexo com nome de amor,
possibilidades. Havia até sonhos. E a sensação de que nenhum deles precisava ter
sentido.
Lembranças são mentiras que se
fincam na existência
como alfinetes perdidos sobre a cama, espetando de surpresa. Essas mentiras
levaram-me tudo, num sangradouro maldito. Ou quase tudo. Deixaram-me os lençóis sem marcas, as
feridas que nunca se fecham, e um desejo de saber como eu teria sido se pudesse
ser feliz.
Meu suicídio não é
planejado. Não terei sobre seu desfecho qualquer controle. Pode ser que se dê pelas artérias, que
cansarão de ser entupidas por mim, ou pelo açúcar que me amputará um a um os membros,
ou talvez por aquela doença
maldita que já levou tanta gente e que alimento de tabaco tantas vezes ao dia.
Talvez, se dê
pelo cansaço.
Ou pela solidão.
Mas se antes essa lenta
imprecisão me era indiferente, agora, não o é mais. Não depois que Beatriz
surgiu em minha vida conformada.
— Dia ruim? —
interrompe-me sua voz carregada de acentos.
É sempre igual este começo. Ela toma sem permissão
o meu espaço
e obriga-me a respostas que eu preferia calar.
— Nem ruim, nem bom. Nada
de novo. Mas você
está feliz. Dá pra ver no seu rosto —
digo, tentando mudar de assunto.
Não sou eu quem me
interessa. De mim sei as falas de cor; conheço as máscaras que os anos me trouxeram.
— Você é impossível mesmo! Só
de olhar pra mim já sabe como eu estou! — ela responde, com uma gargalhada
presunçosa.
Engraçado... Eu costumava dizer
o mesmo à minha mãe, que media meus humores pelo jeito dos meus passos. Mas
Beatriz não é minha filha e não há entre nós nenhuma gota de sangue que
nos leve a tal afinidade. A cria que pari se desfez de mim assim que me tornei
amarga. Não conseguiu transpor a armadura que ajustei ao meu redor para
afastar o mundo. Sentiu-se rechaçada.
Foi-se embora. Mas não sem antes me dizer o que pensava de mim. E de levar
consigo um resto de fé na qual eu enterrava as garras já tão cheias de
sangue. Ela não teve culpa. Não tem. Não pediu para nascer de mim. Soltei os
dedos da crença
quando ela se foi, e nunca mais nos vimos ou nos falamos para mais insultos.
Beatriz não é minha
amante, não é minha amiga. Não é sequer dessas almas que distribuem
bondades por pura caridade ou mesmo pela vaidade de serem elogiadas. Beatriz é
apenas alguém que permito ao meu vazio. Quando eu a conheci, nem gostei dela.
Tive medo da sua intensidade, da sua mania de me arrastar para a luz. Mas,
agora... Agora, aquela morte a conta-gotas se esqueceu de mim. E é Beatriz
quem lhe ordena esquecimento.
— ... numa exposição de artes. — ela está dizendo, indo em meio a
algum assunto que me arranca das reflexões. — Ele só foi lá por acaso, você acredita? Para fazer
companhia à filha recém-separada. E a gente se conheceu.
— Vocês já saíram juntos? — tento acompanhar a história.
— Você não está me escutando?
Faz mais de dois meses que estamos saindo. Este último fim de semana, nós
fomos para a serra. Com este frio, imagina como foi bom! Lareira, vinho... Um
tapete tão alto, mas tão alto que dava para afundar as mãos. E os corpos,
também... — acrescenta com malícia.
— Vocês estão dormindo juntos
desde quando?
— Desde o segundo encontro
— responde, indiferente.
É assim que me fala de sua
intimidade, como se tudo fosse normal e esperado.
— Lá na serra, transamos
o tempo todo! Pela manhã, à tarde e à noite, embaixo de um cobertor
elétrico. Eu não deixei que ele percebesse, mas eu estava morrendo de medo
daquilo me eletrocutar! Já imaginou morrer assim? Fazendo amor?
Não, não me imagino mais
fazendo amor. É doloroso. Mas consigo imaginar a morte. E, por isso, surpreende-me
que também Beatriz tenha pensado nela, dessemelhantes que somos. Temos a mesma
idade, entretanto, nossas diferenças
me envelhecem. Ela não caminha pelas noites insones, pelos dias sem viço, pela vida sem nuanças. Não tem medos, não
descarta vontades, não se conforma com restos.
Quando se convidou para
morar comigo, simplesmente avisou: “A partir de amanhã venho morar aqui. Ando
preocupada com essa sua cara de nada. De perto, cuido de você melhor”. Mas chegou naquela mesma noite,
trazendo um champanha que me relaxou as fibras do corpo, como um instrumento
que finalmente se desentesa. E eu deixei que falasse, e falasse, e falasse,
até que me veio um sono sem remédios.
Agora, preciso que Beatriz
me deixe. Que me devolva o silêncio
da casa e a escuridão da minha vida vazia. Porque começo a ter inveja dela.
Inveja dos homens com quem sai e se deita, das flores que esparrama sem
respeito pelos móveis, das suas gargalhadas que me inibem a tristeza, da sua
pele sem mágoas que afronta os sulcos do meu rosto.
Eu lhe peço que se cale um pouco.
Mas ela não se cala. Não tem pressentimentos. Obriga-me os ouvidos ao que
não tive, não tenho. E ainda me convida a viver. Tenta-me com lugares e
pessoas que eu gostaria de rever, com ofertas que me parecem possíveis. E
quase me alcança.
Por isso, hoje, eu vou
matá-la.
Antes que ela alcance a
porta, terei rasgado todos os papéis sobre a escrivaninha. E terei lançado fora as canetas, e
desligado as máquinas às quais me reconduzo sempre a imaginar-lhe enredos e
capítulos. Ela tentará implorar, como já fez de outras vezes em que se
sentiu ameaçada.
Vai usar dos artifícios que conheço
para encher-me os olhos de lágrimas e comandar meus dedos novamente às folhas
e aos enredos e ao teclado. Não cederei.
Hoje, não. Hoje, cessarei Beatriz.
Depois que ela se for, vou
sentar-me com o cão aos meus pés. E seguiremos desalterados em nossa morte.
(este conto faz parte do meu livro "Sob os escombros", lançado
em fevereiro de 2014 pela Editora Patuá)
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
2 comentários
Conto avassalador, com a marca dessa grande escritora. Poucos conseguem como ela descrever o desencanto pela vida. A tristeza da personagem chega a ser palpável.
Fiquei sem voz durante um momento...
Um conto pungente e absolutamente perfeito!
Muito obrigada por este voo... nas suas linhas e na alma...
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