Tese Sobre Um Homicídio
(Este texto contém
spoilers)
A produção argentina “Tese
sobre um homicídio” (2013), de Hernán Goldfrid, confirma a excelência do cinema
portenho ao investir no thriller psicológico e na elegância narrativa para
contar o jogo de gato e rato estabelecido entre o proeminente professor de
Teoria Jurídica, na Faculdade de Direito de Buenos Aires, Roberto Bermúdez
(Ricardo Darín, mais uma vez brilhante) e Gonzalo Ruiz (Alberto Ammann,
convincente), aluno em seu curso de pós-graduação e filho de um casal amigo do
professor. Desde que se conhecem, a relação é marcada por uma forte
ambiguidade: a admiração que resvala na rivalidade, que pode e conduz a
conflitos que colocam geração contra geração e mestre contra aprendiz.
Na trama, Bermúdez tem o
reconhecimento pelos anos em que foi advogado criminal, como professor e
escritor. Ao encontrar Gonzalo instala-se uma animosidade, misto de
desconfiança e vaidade, que o leva a acreditar que o jovem é o responsável por
um cruel assassinato de uma moça, que ocorre no estacionamento da universidade
durante o período de aula. A partir desse ponto, toma o primeiro plano a tese
levantada por Gonzalo: a de que a resolução de um crime ganha maior ou menor
importância conforme o grau de status da vítima. O aspirante ao mundo do
Direito argumenta que ao se matar uma borboleta a repercussão será maior se a
mesma fizer parte da coleção de um ricaço. Ou seja, a Lei estaria atrelada ao
poder, consequentemente a Justiça examina e busca solucionar, com empenho e sem
escusas – como apelo à falta de pessoal e testemunhas –, apenas casos que
atingissem esse poder de quem tem a Lei.
Adaptado do romance
homônimo do portenho Diego Paszkowski (publicado em 1999), o filme se
desenvolve tendo o ponto de vista de Bermúdez como elo entre o enredo e o
espectador. Sob esse filtro, conhecemos um homem solitário, altivo e obsessivo.
Darín nos possibilita transitar da crença à desconfiança em relação à certeza
de Bermúdez a culpa do jovem. Pelo ex-advogado ser um homem que não admite a
chance de estar equivocado quanto a sua acusação, cria-se um cenário para que
toda ação ou frase de Gonzalo se torna elemento de uma provável resolução do
mistério. Esse jogo de gato e rato foi explorado à perfeição por Alfred
Hitchcock no ótimo “Festim Diabólico”, de 1948. Se na obra de Hitchcock os assassinos
têm como motivação a sua suposta superioridade intelectual e para o público,
que sabe quem são os culpados, resta (o que não é pouco) acompanhar o professor
desvendar o crime, em “Tese sobre um homicídio” a preocupação central do
roteiro é manter a expectativa a respeito da comprovação da suspeita de
Bermúdez. Nesse sentido, contribuem para a manutenção do clima de dúvida a
fotografia clara-escura de Rolo Pulpeiro, a música do espanhol Sergio Moure, os
gestos e olhares dos protagonistas, a presença na trama de uma bela jovem,
Laura Di Natale (a bela Calu Rivero), irmã da vítima e que se envolve com ambos
de maneiras distintas e as pistas e antipistas, que cooperam para deixar em
suspense se Gonzalo realmente lança um desafio ao professor ou se esse segue
sua intuição apenas por fundamentar suas suspeitas nos detalhes que, somado à
soberba do aluno, o levam a considerá-lo autor do homicídio.
Em se falar em detalhes,
são justamente esses os principais elementos de sustentação narrativa. As
minúcias não são essenciais tão somente para indicar um culpado pelo crime
brutal da jovem Di Natale, mas também são soltos durante os diálogos para
completar a personalidade de Bermúdez e guiar sua desconfiança e obsessão. Por
exemplo, a corrente com um pingente de borboleta deixado no corpo da moça
assassinada leva o ex-advogado criminal a se fixar na teoria de Gonzalo sobre a
rapidez da justiça em casos relacionados a pessoas com recursos financeiros,
assim como a interpretação do aluno para um quadro de Picasso. No polo
emocional, o modo como Bermúdez não consegue se desvencilhar de sua ex-mulher,
ligando para ela no meio da madrugada e a envolvendo em seu pressentimento
quanto a responsabilidade de Gonzalo no crime, quando procura sua contribuição
como psiquiatra (a profissão dela não fica claro ao longo das consultas que
presta, contrariada, a Bermúdez). Além de um caso, o “caso da torre”, que
indica que a intuição, e posterior obsessão, do professor já o fizera se
enganar anteriormente, porém nunca é revelado o conteúdo desse fato. Desse
modo, os detalhes, defendidos em aula por Bermúdez como porto seguro do juiz,
isto é, pontos de confiança para o julgamento do magistrado, garantem as bases
para um alicerce firme no que tange a exploração do gênero noir. Apesar do gênero
não ser um dos mais explorados na cinematografia latino-americano, Goldfrid
entrega uma película que elabora com destreza os clichês do filme policial:
trama intricada, ambiguidade, personagem misterioso (vilão?) e uma mulher
sedutora (mesmo que longe de ser uma femme fatale). “Tese sobre um homicídio”
lembra realmente as produções hollywoodianas do gênero, o que sugere a falta de
certa identidade portenha ao filme. O que pode ser um problema se considerarmos
que talvez falte uma assinatura mais particular a obra apresentada por
Goldfrid. Porém, essa relação mais próxima da tradição fílmica estadunidense,
mesmo em sua ambientação, gera a possibilidade de elaborar os clichês sem se
preocupar com o desenvolvimento dos nuances culturais.
A disputa entre um
ex-advogado maduro, que procura a verdade (parcial?) a qualquer custo e um
jovem vaidoso, que acredita na relatividade e manipulação dessa mesma verdade,
coloca em evidência o direito como possibilidade de conflito de personalidades
– que se encontram no embate intelectual e no debate dos limites da ciência
jurídica –, acarretando a discussão sobre as fronteiras da Lei, se a justiça
não seria mero jogo de interesse e a sua
legitimidade não estaria vinculada à “relevância” política/social da vítima e
dos implicados no caso.
Com um final em aberto,
mantendo a coerência em relação ao ponto de vista narrativo adotado, fica a
dúvida se Bermúdez não levou, mais uma vez (?), longe demais sua confiança em
sua intuição e conhecimento dos procedimentos investigativos ou se caiu na
armadilha e encontrou em seu antagonista um adversário demasiadamente
perspicaz. “Tese sobre um homicídio”
retrata com precisão um duelo de egos, em que Darín comprova (outra vez) ser o
melhor ator deste incipiente século XXI.
Wuldson Marcelo é mestre
em Estudos de Cultura Contemporânea e graduado em Filosofia (ambos pela UFMT).
É revisor de textos, autor do livro de contos “Subterfúgios Urbanos” (Editora
Multifoco, 2013) e um dos organizadores da coletânea “Beatniks, malditos e
marginais em Cuiabá: literatura na Cidade Verde” (Editora Multifoco, 2013).
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