Tudo o que não conversamos
Não tenho medo de falar
dos meus medos. E tenho muitos medos. Tenho medo de cair em público, medo de
perder alguém que eu amo, medo de morrer, medo de rato. Até outro dia tinha
medo de dirigir. Na minha segunda aula de direção, caí num choro inconsolável,
que deixou sem graça meu instrutor. Mesmo com medo, consegui passar na prova,
mas somente um ano depois é que eu consegui dirigir sozinha. Com a boca seca,
as pernas bambas, e mal conseguindo respirar, fui de casa até o trabalho. Foi
assim no primeiro, no segundo, no terceiro dia. Depois a boca não secou mais,
nem as pernas bambearam. Agora já consigo dirigir e respirar, dirigir e ouvir e
cantar músicas, dirigir e conversar, dirigir e dar carona. Ainda não sei fazer
baliza, mas paciência.
Mas começar a dirigir
sozinha me trouxe algumas responsabilidades que antes eu não tinha. Como, por
exemplo, levar o carro pra revisão. “Vamos trocar todos os fluidos, os filtros
e todas as velas”. Não entendi nada, mas imaginei logo um grande bolo de
aniversário cheio de velas para serem trocadas. Acho que pareci meio doida por
pensar nisso, mas é que ando às voltas com o meu aniversário de trinta anos que
se aproxima. Será que se trocassem meus filtros e minhas velas eu ficaria mais
nova?
Bem, deixando o carro pra
revisão, precisei de carona da concessionária para voltar ao trabalho. Entramos
no carro eu e uma outra moça, uma bela moça de olhos claros. Senti uma simpatia
imediata por ela e fiquei com vontade de puxar assunto: Deixar o carro assim
causa certo transtorno né? Há que se fazer toda uma reorganização no dia.
(Mentira, até ontem eu andava de ônibus e nunca morri). A bela moça
contentou-se em esboçar um breve sorriso e não disse nada.
Inquieta, ainda queria
conversar, porque achei que aquele tempo que estávamos juntos, eu, ela e o
motorista, era precioso demais para ficarmos em silêncio. Comentei: que tempo
esquisito né? De manhã está frio e à tarde esquenta muito. Tem que ficar
carregando o casaco. Nada. Nem dela e nem do motorista. Mil coisas passavam na
minha cabeça. Pensei em perguntar se estavam preparados para o jogo de amanhã
contra a Holanda. Mas calei a pergunta. Fiquei com medo de que não respondessem
e isso seria, francamente, constrangedor.
Não sei por que o silêncio
me incomodou tanto. Não foi tanto tempo
assim, o trajeto era relativamente curto. O fato é que eu senti um estranho
medo, talvez inédito. Medo de estar sozinha, ainda que rodeada de gente. Medo
de que nem mesmo uma conversa banal seja possível entre duas pessoas que,
coincidentemente, no mesmo dia resolveram deixar o carro na revisão. Pra
preencher o vazio do que não conversamos, do que podíamos ter conversado,
imaginei:
- Deixar o carro assim
causa certo transtorno né? Há que se fazer toda uma reorganização no dia.
- Sim, nossa, eu tive que
parar meu trabalho no meio para poder estar aqui.
Tenho muita pressa. Diria
ela, após o esboço de um sorriso.
- E você trabalha com o
quê?
- Sou enfermeira chefe num
grande hospital.
- Que legal!
E antes que ela me
perguntasse, eu diria:
- Eu sou psicóloga! Também
tive que desmarcar uns pacientes para estar aqui.
- Psicóloga? Que legal,
minha prima faz psicologia. Ela adora.
- Ah é? E onde ela faz?
- Na USP.
- Poxa, que bacana!
...
- Que tempo esquisito né?
De manhã está frio e à tarde esquenta muito. Tem que ficar carregando o casaco.
- Nem me fale. Semana passada peguei um
resfriado por causa disso! Mas agora já estou bem melhor.
- Está preparada para o
jogo de amanhã contra a Holanda?
- Nossa! O que foi aquele
jogo contra a Alemanha? Será que estava mesmo comprado?
- Ah, não sei não! Há
muitos boatos. Bem, desço aqui. Legal te conhecer. Bom trabalho.
- Bom trabalho pra você
também.
A conversa acabaria aí e,
provavelmente, nunca mais nos veríamos, mas não teríamos perdido a oportunidade
de saber uma da outra. Antes que a viagem
chegasse ao final, senti uma leve gosma começar a crescer entre meus dedos. E
logo meu corpo todo estava recoberto por uma camada de líquido viscoso. Em
instantes, uma fina casca se formou ao meu redor e nem mais meus olhos estavam
isentos da cegueira imposta pela carapaça. Voltei à razão e descobri que tenho
medo de virar um casulo. Às vezes eu tenho medo de esquecer como é ser gente.
Isloany Machado -
Psicóloga clínica (CRP 14/03820-0) Psicanalista, membro da Escola de
Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fórum do Campo Lacaniano de
MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo
Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora
da ciência e costuradora de palavras por opção.
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