Amadeus amava a
Inglaterra, e disse em tom agressivo à mulher:
- God save the Queen!
Ela replicou:
- Que vá pro inferno!
Ele triplicou:
- Never. Esses
anti-ingleses nojentos.
Denise ficou em silêncio.
Amadeus é um tipo irascível, defensor ferrenho dos modos bretões. Denise
olhou-o com firmeza. Ele contemplou o relógio e exclamou:
- Cinco horas. Hora do tradicional chá.
Amadeus bradava seu amor
pela sobriedade sombria de Londres, a efervescência cultural e todas as
contradições, que ele entendia como benesses à humanidade. Denise irritava-se
com tudo que fosse Made in Inglaterra, até mesmo The Beatles.
- Esses anglo-saxões foram
os responsáveis pela instituição de crises políticas e sociais irremediáveis, e
infinitas ao redor do planeta.
Ele não respondeu e
sugeriu que jantassem em um restaurante britânico, cujo proprietário oferecia,
após a refeição, um clima soturno de música new age e muito chope. Denise
esbravejou e se negou a ir.
- Vamos a uma pizzaria.
- Convém que decidamos na
sorte. Par ou ímpar.
Denise, par. Amadeus,
ímpar. Par! E lá foram eles para o divertimento ítalo-brasileiro.
- O melhor livro de todos
os tempos é “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Brönte. Denise, você há de
concordar que na Inglaterra, além dos grandes escritores como Jane Austin,
Graham Greene, Oscar Wilde, Virgínia Woolf, há os filósofos, os sensualistas
como Hume, Edmund Burke. Os empiristas como John Locke. Sem falar em Isaac
Newton, esse gênio insuperável.
- Como você é ingênuo.
Fala como se tudo que foi criado na Inglaterra surgisse do cerne da alma desses
grandes intelectuais. Não acha que o momento histórico, as respostas para as
circunstâncias que envolviam o período, nada têm a ver com isso? O mundo e a
produção abundante no campo científico, filosófico, artístico não os inspiraram
a solucionar os problemas, as contradições e o movimento que a razão humana
perfaz? Dostoievski antes e Einstein depois.
O planeta gira e a Inglaterra é uma
droga de país que nada foi capaz de criar sem usurpar dos franceses, dos
russos, de todos. Assim, Descartes antes e Newton depois.
Amadeus, passivo, observou
a esposa franzir as sobrancelhas e nada falou. Denise pediu que ele parasse
numa tapeçaria iraniana.
- Claro, querida.
“Querida”, ele disse
secamente. Denise encomendou um tapete persa e imaginou que as ladys inglesas
deveriam ter pelo menos dois em casa.
- Amadeus, não vamos
brigar por causa deste maldito país.
Ele desconhece os motivos
do ódio de Denise pela Inglaterra.
- Você poderia respeitar
minhas preferências. Não escolhemos o país onde nascemos, mas podemos aceitar
aquele com o qual nos identificamos.
Ela não sabe quais são as
razões que levam Amadeus a glorificar o solo britânico.
- Amor, não vamos brigar;
sussurrou Denise.
A pizzaria 50% italiana
estava à vista. Amadeus parou o automóvel. Beijou a mulher e saiu. Atravessou a
rua, entrou numa relojoaria de um brasileiro que tem como sócio um sul-coreano
e comprou ilegalmente um revólver estadunidense. Correu pela rua e disparou,
acertou o ombro de Denise. Ela caiu e três corajosos transeuntes detiveram
Amadeus até a polícia chegar. Denise foi levada para o hospital. A população que observava a crise instalada
entre o casal, formado por um descendente de angolanos e uma filha de
japoneses, se dispersou sentenciando que a cidade estava cada dia mais
violenta.
Durante o depoimento o
delegado perguntou à Denise o motivo de tão grave agressão. Ela respondeu:
- Falta de afinidades
patrióticas.
Wuldson Marcelo é mestre
em Estudos de Cultura Contemporânea e graduado em Filosofia (ambos pela UFMT).
É revisor de textos, autor do livro de contos “Subterfúgios Urbanos” (Editora
Multifoco, 2013) e um dos organizadores da coletânea “Beatniks, malditos e
marginais em Cuiabá: literatura na Cidade Verde” (Editora Multifoco, 2013).
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