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A matriarca irlandesa [Cinthia Kriemler]


87 year old hands/por Alexander Kleppesto

A matriarca irlandesa

Um irlandês católico não enterra seus parentes aos domingos. Herança das tradições gaélicas que nenhum dos O’Malley ousaria contrariar, nem mesmo agora que a matriarca tinha exalado o seu último suspiro.

A seanmháthair mór, ou bisa, como acabaram por chamá-la seus descendentes, tinha morrido, aos 89 anos, num sábado à noite, o que significava um velório prolongado até a segunda-feira. Logo de cara, os preparativos esbarraram num empecilho constrangedor: o corpo avantajado da matriarca não cabia em nenhum caixão. Como não havia tempo para outras opções, Seamus, o filho mais velho, decidiu que a mãe seria encaixada num ataúde de menor porte mesmo. 

— Afinal, — justificou-se ele, tentando fazer graça para os homens da funerária

— mamãe não pode reclamar de mais nada, não é mesmo?

A Senhora O’Malley tinha nascido em Cork, cidade da Província de Munster, na Irlanda, no ano de 1920. Gostava de contar para todo o mundo que tinha nascido no ano em que um Ato de Governo tinha separado o país em Norte e Sul, na tentativa de afastar católicos e protestantes de um conflito. Orgulhava-se de Cork, uma cidade construída sobre sete colinas, como explicava a torto e a direito. Sentia-se como a cidade, fortemente assentada em pilares morais, os mesmos que lhe permitiram criar a família com mão de ferro, depois da morte prematura do marido, que a deixara viúva aos 34 anos. Viu-se sozinha numa terra estranha, com quatro filhos pequenos, e um negócio de vender tecidos que, mais tarde, deu origem a uma grande tecelagem. Nunca aprendeu direito a língua portuguesa, mas aprendeu a amar o país que lhe deu o sustento e uma vida de regalias. 

A filha caçula da Senhora O’Malley, Noreen, e seu marido foram os primeiros a chegar ao velório. Logo depois, foi a vez dos outros dois filhos, Duncan e Peter, dos netos, bisnetos, esposas, noivas e namoradas de netos e bisnetos, e dos amigos, fornecedores, sócios e vizinhos. A quantidade de feições semelhantes às da morta confirmava o quanto a seanmháthair mór tinha o sangue forte. Por último, chegou Padre Ambrósio, velho conhecido da matriarca e também seu confessor. Apressado, dirigiu-se imediatamente até o grupo que se encontrava ao lado do caixão, para dar início à missa de corpo presente.

No momento em que o religioso postou-se à cabeceira do caixão, um cheiro forte e característico tomou conta do ar: 

— Aff! — exclamaram os mais próximos da defunta, abanando o nariz.

— Peço perdão a todos, mas os senhores sabem que é comum aos mortos soltarem gases — disse, em tom constrangido, o primogênito da Senhora O’Malley. 

— Safado! — indignou-se uma voz enfurecida — Não foi essa a educação que eu lhe dei!

— Quem disse isso? — agitou-se Seamus. 

— Você sabe muito bem quem foi que soltou esse cheiro pestilento por aqui, meu rapaz! — continuou a voz — A cada vez que você ia me fazer companhia, durante o coma, a morte desistia de vir me buscar só por causa do fedor naquele quarto! Eu só não me levanto daqui para lhe aplicar um corretivo porque você me entalou de propósito nesta caixinha apertada!

— Muito bem, quem está fazendo isso? Chega! Não tem graça nenhuma brincar com uma coisa tão sagrada quanto a morte! — continuou o primogênito, procurando entre os rostos próximos um candidato à culpa. 

— Desde quanto você acha a morte tão sagrada, meu filho? A primeira coisa que você fez quando eu lhe contei que o seu pai foi enterrado com um relógio de ouro e um alfinete de gravata de platina foi mandar desenterrar o coitado para surrupiar as joias!
Estarrecido, Seamus voltou-se para seu irmão Duncan e o apanhou pelo colarinho: 

— Você vai aprender a mexer comigo, seu linguarudo, seu inútil!

— Inútil, sim, mas completamente inocente no caso presente — ouviu-se novamente, zombeteira, a voz. 

— Ma...ma...mamãe?!

— Em carne e osso. Bom, pelo menos por enquanto... 

Gritos, choro, desmaios e correria. O padre começou a benzer-se e a benzer os presentes, sem coragem de olhar para a morta. “Afasta todo o mal, Senhor, dessa pobre alma que agora deseja descansar em Teu repouso eterno! Afasta dela o espírito impuro!”, repetia sem parar.

— Lindas palavras, meu bom amigo, mas isso não é coisa do Tinhoso não! Não sei explicar como é que pode, mas confie em mim que sou eu mesma!

Incapaz de acreditar nos seus ouvidos, Padre Ambrósio voltou a clamar aos céus, iniciando um exorcismo improvisado: 

— Eu comando que saias desse corpo, espírito imundo!

— Xiiiu! Quieto, Padre Ambrósio! Eu venho treinando essa coisa de falar com as pessoas sem abrir a boca há mais de um mês, desde que entrei em coma e padeci naquela cama, cercada por esses incompetentes! Só não sabia é que ia conseguir depois de morta! 

Percebendo, por fim, que as palavras não saíam de mais nenhum canto senão da morta, as pessoas deixaram que a curiosidade substituísse o medo. Os conhecidos se aproximaram do caixão, afastando-se das janelas por onde entrava um mormaço pegajoso. Os bisnetos menores da matriarca se amontoaram num canto, apavorados, mas também felizes por verem o aperto dos adultos.

Nesse instante, um senhor de idade acercou-se da defunta e, pondo a mão sobre os seus cabelos espessos, disse, carinhoso: 

— Minha querida cunhada. Há, ainda, alguma coisa que a prenda aqui, entre os mortais?

— Há,sim! Uma deles é desmascarar um velho indecente como você, que aproveitou todos os dias do meu coma para me bolinar! E vá tirando a mão da minha cabeça, seu depravado!

Indignada com a revelação, uma das noras da Sra. O’Malley tirou o homem de perto do caixão: 

— Saia daqui, seu pervertido!

— Pervertido, sim, mas não é ladrão... — atalhou a defunta. 

— O quê?!  — retrucou a nora.

— Você já vendeu aquela minha placa de brilhantes que retirou do cofre do meu quarto, ou pretende usá-la, agora que eu morri, e dizer aos outros que eu lhe deixei de herança, minha nora?

Incapaz de fechar a boca de espanto, a acusada ouviu as expressões de indignação de toda a família. 

— Diga para a sua mulher devolver as joias da mamãe! — gritou Peter, transtornado, para Seamus.

— E você, filho querido, aproveite e devolva o dinheiro que desviou da conta da tecelagem, está bem? — ironizou a matriarca. 

— Eu sabia, eu sabia! — choramingou a caçula Noreen, buscando refúgio nos braços nada entusiasmados do homem ao seu lado — O meu marido avisou que as contas da empresa estavam com problema, mas ninguém quis ouvi-lo! Viram só? Peter, seu ladrão, você vai devolver até o último centavo do dinheiro que roubou da família!

— Bem, devolver, sim, mas descontando o dinheiro que o seu marido gastou em presentes para a amante, Noreen. Senão, seria injusto com o seu irmão. 

Descontrolada com a notícia, recebida de chofre, Noreen caiu num choro copioso e barulhento. Sua neta adolescente, desolada por vê-la tão abalada, tomou-lhe as dores:

— Que maldade, bisa! Tem certas coisas que é melhor não contar! 

— Certas coisas... Sim! Como as agarrações entre você e aquele rapazinho, lá no meu quarto, enquanto diziam para todo o mundo que estavam me fazendo companhia, não é mesmo, bisnetinha?

— Melhor rezarmos agora a missa de corpo presente e enterrarmos logo a Senhora O’Malley! — atalhou, subitamente, Padre Ambrósio — A alma dela precisa de sossego. E a humanidade, também! 

— Hahahaha, meu amigo medroso! Hoje é domingo, e os irlandeses não enterram seus mortos aos domingos!

Embaraçados, profundamente incomodados, os membros da família O’Malley não conseguiam mais se encarar ou dizer palavra. Tinham medo que a defunta, ouvindo sua voz, se lembrasse de mais algum malfeito. 

As crianças, acostumadas a serem sempre as vítimas dos pais, tios e avós, soltavam risinhos abafados de contentamento.

— Você viu? A bisa disse que o seu avô peida! — provocou uma menina mais crescida. 

— Cale a boca! Eu vou contar para a minha mãe que você falou essa palavra, viu? — agitou-se um menino menor.

— Peida, peida, peida... 

— Para, para! Pior é a sua avó que é lad... ladr...ladrona! Roubou o broche da bisa!

— Não roubou! Ela sabia que a bisa ia morrer e pegou para ela! 

— Xiiiu!!! — ralhou a defunta — O que é que você estão whispering aí, seu moleques? Estão cochichando para ver se eu me esqueço de vocês e não conto para os seus pais quem foi que quebrou a minha cristaleira no ano passado, é? Pois fiquem sabendo que, depois que eu morri, eu sei de tudo, de tudo!

Silêncio completo da meninada. 

— Cadê a língua? O gato comeu? — continuou a morta. — Ah, não, eu já ia me esquecendo! O gato não comeu porque ele morre de medo de chegar perto de você, não é mesmo, Duncan Neto? Desde que você trancou o coitadinho dentro de uma máquina de lavar, há algumas semanas! Peste! Coisa ruim!

— Vovó, pare imediatamente de falar assim com o meu filho! — revoltou-se um rapaz que até então não tinha se manifestado. 

— Seu fi...Seu?! ...Hahahahaha!

Os poucos visitantes que ainda restavam começaram a bater em retirada. Porém, antes que alcançassem a porta, a voz da Senhora O’Malley sibilou de novo no ambiente: 

— Agora, me deixem conversar um pouco com as visitas, porque senão é falta de educação.


Cinthia Kriemler - Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.

Um comentário

cecilia disse...

Cinthia, essa sua via humorística eu não conhecia!! Um espetáculo esse texto. Morri de rir. Parabéns! Talento puro!