NEBRASKA
Woodrow (Woody) Grant
(interpretado por Bruce Dern), casado com Kate (June Squibb), mecânico
aposentado, dois filhos adultos, alcoólatra e quase senil. Não é o melhor
currículo para quem está quase encerrando o ciclo da vida. Depois de receber um
folheto publicitário, que anuncia que ganhou um milhão de dólares, decide
fazer, de qualquer maneira, uma viagem de mais de mil e quinhentos quilômetros.
É essa a distancia que separa Billings (Montana) de Lincoln (Nebraska). Ele
quer receber pessoalmente o prêmio
A vida de David Grant
(Will Forte) está à beira do colapso. Ele acaba de se separar da mulher com
quem viveu durante dois anos. O emprego medíocre e a insensatez do pai, que,
diversas vezes, tentou “fugir” de casa, se tornam suas maiores preocupações. Em
vários momentos tenta explicar para Woody que o prêmio é uma armadilha do
capitalismo. A oferta financeira está relacionada com assinaturas da revista
que elaborou a promoção. Como não consegue convencer o velho, David se deixa
vencer pelo cansaço. Pede alguns dias de licença no trabalho, coloca o pai
dentro do carro, e inicia a jornada por quatro estados (Montana, Wyoming, South
Dakota, Nebraska).
Apesar de apresentar
alguma semelhança com o enredo de A Grande Viagem (La Grand Voyage. Dir. Ismaël
Ferroukhi, 2004), filme onde o desencontro afetivo entre pai e filho precisa
superar o constrangimento de uma viagem forçada, Nebraska (Dir. Alexander Payne,
2013) não é exatamente um road movie (gênero de filme em que a história se
desenvolve durante uma viagem). Faltam-lhe algumas das características que o
espectador encontra em Sem Destino (Easy Rider. Dir. Dennis Hopper, 1969),
Encurralado (Duel. Dir. Steven Spielberg, 1971), Paris, Texas (Wim Wenders,
1984) ou História Real (The Straigh Story. Dir. David Lynch, 1999). No filme de
Alexander Payne, o dinamismo dos deslocamentos geográficos, em determinado
momento, é substituído pelo imobilismo físico.
David, para desagrado do
pai, decide interromper a viagem e reunir a família. Convoca a mãe e o irmão,
Ross (Bob Odenkirk), para passar o final de semana na casa de um dos irmãos do
pai em Hawthorne (Nebraska). Imagina, nesse intervalo, que pode conseguir com
que Woody desista da viagem. E, recuperada a lucidez, volte para casa. O que
não estava em seus planos é que, sem a mínima noção de perigo, Woody conta para
os familiares e, um pouco mais tarde, para o ex-sócio, Ed Pegran (Stacy Keach),
que vai se tornar milionário. Em cidade pequena, algumas notícias se propagam
com a velocidade de rastilho de pólvora. Foi o que aconteceu.
A novidade também
apresenta efeitos colaterais. O delírio de Woody se transforma em um
catalisador da inveja. Ed Pegran e alguns parentes não perdem tempo e cobram
várias dívidas – e pouco importa se são verdadeiras ou imaginárias. De nada
adianta David e Ross afirmarem que tudo é fruto de fantasia e decrepitude.
Ninguém acredita. Todos querem uma fatia do dinheiro inexistente. Inclusive os
irmãos Cole e Bart que, de forma patética, assaltam o tio e o primo.
Em paralelo, enquanto o
mundo concreto continua à deriva, David, com paciência de garimpeiro, vai
descobrindo fragmentos da biografia de seu pai. Tudo acontece de forma
ocasional, quase sem encadeamento. Ao falar sobre casamento e paternidade, o
pai diz para o filho que só casou porque gostava de trepar e a esposa,
católica, queria ter filhos. Em outra conversa, Ed Pegran deixa escapar que, um
pouco antes do nascimento de David, o amigo quase abandonou Kate – estava
apaixonado por uma descendente indígena. No jornal da cidade, o filho encontra
uma antiga namorada do pai, que lhe mostra uma reportagem sobre a participação
de Woody na Guerra da Coréia. Ao visitarem a casa em que o pai nasceu, Woody
comenta que era frequentemente espancado na infância. Esse aprendizado a
conta-gotas permite a formação de uma imagem mais humana de um homem que, até
então, era visto como um pai pouco carinhoso e constantemente embriagado.
Nas cenas finais, David e
Woody não mais se comportam como estranhos. Em Lincoln, a história do milhão de
dólares é esclarecida, apesar da frustração. Logo depois que Woody admite o
engodo, David conversa com a funcionária da revista:
– Isso acontece muito?
– De vez em quando. Com
gente mais velha, como seu pai. Ele tem Alzheimer?
– Ele só acredita no que
dizem a ele.
– É uma pena.
– É.
Em lugar de deixar algum
dinheiro como legado, Woody, de forma muito estranha, por vias transversas,
consegue fornecer aos filhos algo mais importante, mais valioso. A cumplicidade
entre pai e filho.
P.S.: As agruras da
velhice, os ressentimentos familiares, o mergulho no passado, as histórias
inconclusas, o reconhecimento de uma identidade comum entre o pai e o filho são
elementos temáticos potencializados pelo uso (quase herético) do preto e
branco. Nebraska se vale das ilusões produzidas pelo chiaroscuro para fornecer
mais dramaticidade ao enredo.
Constantine Alexander
Payne, nascido em Omaha (Nebraska), em 1961, dirigiu, entre outros filmes, Ruth
em Questão (Citizen Ruth, 1996), Eleição (Election, 1999), As Confissões de
Schmidt (About Schmidt, 2002), Sideways – entre umas e outras (Sideways, 2004 –
Oscar de Melhor Roteiro Adaptado) e Os descendentes (The Descendants, 2011).
Raul
J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008),
publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no
Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional,
segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias
como se fossem uvas”.
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