PERTENCES
– Oi, Clô! –
Cumprimentou-a, sem saber se dava dois beijinhos ou se a saudava com um aperto
de mão. Preferiu um abraço, que de tão apertado provocou um gemido na
ex-mulher.
– Posso entrar? – já
entrando.
– Claro, a casa é sua... –
disse sem pensar, provocando um sorriso amarelo nos dois – Suas coisas estão no
quarto de hóspede.
– Quando as coisas do
marido vão para o quarto de hóspede, cedo ou tarde um hóspede coloca suas
coisas no quarto do marido! – pensou alto, enquanto ia ao encontro dos seus
pertences.
– Ex-marido, Afonso!
Ex-marido – corrigiu-o.
– Uhm... – coçando o
queixo assim que chegou no quarto – Depois de todos esses anos, tudo que tenho
não passa de duas pilhas com menos de um metro e meio? – já ficando de mau
humor.
– Uma pilha, Afonso! A
outra é de coisas para jogar fora! Besteiras acumuladas ao longo dos anos...
– Tá certo. Nunca gostei
daquela caneca mesmo!
– Não, Afonso, essa é a
sua pilha. A outra é que é para descartar!
– Ãh? Essa aqui? Pirou?
Minhas apostilas de cursos... – pegando a primeira do monte.
– Tem coisas aqui de
quando você ainda era estagiário. Você já está quase se aposentando.
– Eu posso precisar...
– Aquela ali, por exemplo,
é de um curso datilografia. Vai precisar?
– Tem valor sentimental!
– Pela datilografia?
– Não, pela professora.
Foi o superdecote dela que me ensinou a datilografar sem olhar pro teclado.
– Aff – ela suspirou,
sabendo que ele a estava provocando – E o taco de golfe? Não vai me dizer que
ainda vai insistir com essa história de querer jogar golfe?
– O quê? O meu taco de
golfe? Ia jogar fora o meu taco Super Nike Pro TeamGolf Special? – protestou,
aos berros – Lembra o trabalho que deu comprá-lo naquela viagem?
– Se lembro? Comprar foi
fácil, difícil foi trazer! Eu que tive de carregar.
– Claro! – desdenhou – Eu
estava ocupado carregando seu jogo de louças francesas de duzentas e quarenta
peças.
– Era uma pechincha,
Afonso. O mesmo não se pode dizer do seu taco. Custou metade do dinheiro que
levamos pras férias! “Eu quero um taco profissional!” você dizia para o
vendedor. Só de lembrar que tivemos de passar o resto da viagem comendo
McDonald’s... – sentindo toda a raiva novamente.
– É... mas o meu taco é
original. O que não se pode dizer das louças francesas made in China...
– Pelo menos a gente usa.
Então me diz... Quantas partidas de golfe você já jogou?
– Primeiro tenho de
praticar, Clotilde...
– Antes não praticasse!
Esburacou todo o jardim. E depois ainda botou a culpa no cachorro!
“Treinando”... – caçoou – Com bolas de tênis?! Muito profissional!
– Culpa sua! Ou não se
lembra que ameaçou se separar se eu comprasse mais aquelas bolinhas. Se eu
soubesse que a gente ia acabar se separando de qualquer jeito... tinha
comprado!
– As que você queria
custavam trinta dólares cada uma, Afonso!
– Você me conhece,
Clotilde. Eu sou exigente. Pra mim tem de ser o melhor! Não aceito imitação.
– Ah não? E o que é aquela
sua secretária de cabelo oxigenado? Aquela loira falsa com quem estava tendo um
caso... Genérico? Similar?
– Não muda de assunto.
Estamos falando de golfe... Se até o Bush consegue jogar... deve ser fácil! É
que nem jogar taco. O mesmo princípio!
– E desde quando você sabe
jogar taco? Foi garoto de apartamento. Nem cuspir você sabe! – debochou.
– Mas posso aprender...
Quer ver?
– Experimenta pra você
ver!
– Tô falando de golfe.
Posso aprender. Agora que estamos nos separando, parece uma boa hora para
começar. – ensaiando um movimento – Vou ficar com um ar mais aristocrático!
– Mmmm... quer ficar
chique?! Aristocrático... Então fiz bem em descartar aquele pôster do Che
Guevara!
– O quê? Ia jogar fora o
meu Che? Como pôde? – vasculhando a pilha – “Hay que endurecerse...”
– Bons tempos... – ela
suspirou.
– Bons tempos?
– É... “Hay que
endurecerse...”
– O que você quer dizer
com isso, Clotilde? Agora fala... – interrompendo a busca.
– Nada não, esquece!
Coloquei os discos do Pink Floyd ali ó...
– Claro, os Pink Floyd...
– coçando a cabeça. Sabia que o assunto era delicado.
– Quantos são? É número
par? Olha só... Pensei nisso vindo para cá. Tenho uma sugestão pra não dar
briga! Faz o seguinte... Vinil vale meio, cd vale dois, DVD vale três...
– Pode ficar com todos...
– Como assim?
– Pode ficar!
– Não, eu faço questão,
Clotilde... Fazemos tudo meio a meio! Fora o quadro do “The Final Cut”... Esse
não, né?! Você sabe que comprei numa galeria em São Paulo. Os bótons também
não... Eu já tinha antes de casar!
– Olha só... Pode ficar
com tudo... Eu não suporto Pink Floyd!
– Ãh? – colocando a mão no
coração – Como assim não suporta?
– Não suporto!
– Como não suporta? –
mirando com o olhar a boca da ex-mulher, para ter certeza que as palavras que ouvia
saiam mesmo dali.
– Que parte não entendeu,
Afonso? Não suporto! É mais que desprezo e menos que odeio!
– Mas então... –
sentando-se pra se recompor do baque. As palavras saiam como sussurros – E o
filme The wall? Vimos dezoito vezes! E o show? Lembra aquele conjunto cover que
assistimos? Você disse que estava igualzinho. Quase chorou de emoção!
– Fingimento.
Afonso devolveu um olhar
incrédulo.
– É isso mesmo. Não
suporto! Pronto, fale!
– Pois saiba que eu...
eu... eu...
Silêncio...
– Eu...
– Diz... Pode dizer...
– Eu não suporto
alcaparras!
– Conta outra, Afonso...
– Não gosto! – de queixo
erguido, confirmou – Odeio! – ousou dizer, com expressão de quem se livrava de
um enorme peso – Acho ardido.
– Mentira... É o teu prato
predileto. Sempre fiz... desde o namoro.
– Detesto! – insistiu, de
braços cruzados.
– Não gosta?
– Não!
– E o filé de linguado com
molho de alcaparras?
– Só comia o filé! As
alcaparras eu raspava e passava do meu prato para o seu quando você não estava
vendo.
– Mas... Mas... É o meu
melhor prato!
– Nunca gostei! –
virando-se de costa pra ela, sem coragem de encara-la.
– E da batata sotê que
acompanha?
– Prefiro fritas!
Silêncio...
– Ah, odeia?
– Odeio!
– Ah é?
– É!
Pensando... Lágrimas
surgiram no canto dos olhos, mas ele não viu – Pois saiba, Afonso, que acho
águas termais um saco! Pronto, disse. Sinto-me até mais leve agora!
– Anrã, sei... – sem se
virar.
– Não acredita?
– Acredito! – disse com
voz zombeteira, voltando a revirar sua pilha de pertences enquanto discutiam –
Conta outra! Está dizendo isso só porque eu...
– Não, juro!
– E aquela vez na pousada
hidromineral? Economizamos o ano inteiro... Quinze dias com as crianças...
Cinco piscinas!!! – parou o que estava fazendo para medir a reação.
– Um saco!
– E a cascata? As
banheiras? O ofurô? – aproximando-se dela.
– Fico murcha... Cai minha
pressão... – enxugando as lagrimas.
– Mas todo ano, desde a
nossa lua de mel, a gente...
– Acho um porre! –
interrompeu.
– Mas por que nunca me
disse?
– Porque você gostava,
Afonso... E eu gostava de te ver feliz!
Os olhares se procuraram
tentando entender a profundidade do que diziam.
– Na verdade, Clotilde, eu
também não gosto muito... – confessou – Nunca gostei... Toda aquela gente
boiando... Aquela água quente... Sempre desconfiei daquela água morna... Pensei
que você é que achasse bom, Clotilde. Ia por você... Pra te agradar!
– E eu pra agradar você...
Silêncio... Ele voltou a
mexer nas suas coisas para disfarçar. Ela na janela, mirando o além com os
olhos marejados.
...
– Clotilde... – finalmente
ele quebrou o silêncio.
– Diga...
– Eu estava pensando... –
se aproximando dela até uma distância que não experimentava desde que haviam se
separado.
– Uhm...
– Estava lembrando da
gente... Depois de algumas taças, ou melhor, depois de algumas garrafas de
vinho... – rindo nervoso – Você sabe... quando a gente... quando rola um
clima... Lembrei da posição do lego louco... A nossa preferida!
– Mmm... – suspirando –
Sei... – olhando para o chão.
– Eu estava pensando...
Ainda temos aquela caixa de vinho Bordeaux?
– Ai, Afonso... – sentindo
um calorão – Que ideia...
– Temos? – sorrindo
malicioso – É só uma pergunta...
– Acho que sim.
– Jura?
– Unrum...
– Posso ficar com ela?
Jean Marcel-
Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois
adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas,
romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com
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Um comentário
Estava com saudade de ler as crônicas de Jean Marcel. Sempre me divirto com elas. São, simplesmente, deliciosas. Essa não fugiu à regra.
Parabéns, Jean!
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