por Milton de Oliveira Cardoso
Junior
Você entra numa ampla e
fresca biblioteca. Pega um tomo. José de Alencar. Depara-se com um índio forte,
másculo e sensual, e com negros dóceis e bonzinhos, que brigam entre si para
servir aos seus donos. No mesmo livro, a voz domesticada do Preto Velho ressoa
no Boqueirão: “Perdoa, Senhor, perdoa!”. Podemos saltar “A Cabana do Pai
Tomás”. A voz doce e triste do Norte, diz Joaquim Nabuco sobre os negros...
“Doze Anos de Escravidão.” Sofrimentos atrozes, mas a voz do narrador, esse tom
piedoso, triste (também do Norte!) e enjoativo, a oração elevada aos céus como
se ele “tivesse a alma branca...”. “Não
se lembra que eu tenho sangue de índio e que a gente de minha mãe nunca se
esquece?” “E Nhô Augusto fechou os olhos, de gastura, porque ele sabia que
capiau de testa peluda, com o cabelo quase nos olhos, é uma raça de homem capaz
de guardar o passado em casa, em lugar fresco perto do pote, e ir buscar da rua
outras raivas pequenas, tudo para ajuntar à massa-mãe do ódio grande, até
chegar o dia de tirar vingança.” Espere aí. Quem escreve o quê? Por favor,
percorram comigo as prateleiras...
Foi sempre assim? Fomos
colonizados pelos portugueses, mas, dificilmente um leitor brasileiro se
reconhece num romance português, ainda mais como criança, tal como se dá num
romance americano. De onde vêm essas similitudes? A América para os americanos?
Em qualquer país do mundo,
a chance de alguém reconhecer a cena de um filme como um lar americano é cem
por cento. No entanto, em nenhum deles ninguém se sente tão à vontade como os
brasileiros em relação à cultura americana. Basta assistir ao filme originado
do livro homônimo citado no início desse artigo. Ou a “E o vento levou...”.
Trata-se de um paradoxo: nós, latino-americanos, tendemos a culpar os Estados
Unidos por tudo de ruim que nos acontece, economicamente falando.
Naturalmente, essa
lateralidade não se refere apenas à literatura ou à busca da identidade. Os
americanos a encontraram muito cedo (aqui, tem início o diferencial entre as
duas etnias), e tornaram sua literatura independente de causas sociais e
altamente profissional. Nós ainda buscamos a nossa identidade. Continuamos
percorrendo círculos em torno dos textos fundadores. Sai José de Alencar, entra
a Globeleza. No entanto, como a literatura espelha a realidade social,
continuamos parecidos aos americanos. Especialmente com relação ao racismo. Nos
dois países, ocorreu algo semelhante. Os índios foram postos de lado; os
negros, barrados. Muitos falam em democracia racial, quando se tratam dos EUA.
Livros e acontecimentos recentes revelam o contrário. No Brasil a miscigenação
é uma realidade, ainda mais quando o negro é rico e instruído – nesse caso, não
há negro. A escola e as universidades vêm promovendo um grande movimento de
conscientização racial a partir dos anos 80. Hoje, a autoestima do negro
brasileiro está nas alturas.
Os espanhóis colonizaram
parte da América do Sul. O Brasil faz fronteira com países cuja cultura deriva
da Espanha. Compartilhamos algumas semelhanças, é verdade. Além da cultura e do
tronco linguístico, alimentamos a tendência para o populismo, e o fato de que
ainda somos sociedades em desenvolvimento. Periféricas. Além disso, a
literatura sul-americana tem um texto fundador em comum. Mas, é só.
Temos uma proximidade
maior com os norte-americanos. O chamado modo de vida americano não está tão
distante de nós, seja em termos históricos, seja na maneira como nossas
sociedades se desenvolveram. Portugal, Espanha e Inglaterra legaram-nos algumas
características reconhecidas pelos sociólogos. Os norte-americanos são
pragmáticos; a América espanhola, mais sanguínea (e sonhadora); os brasileiros,
realistas. Certo. A globalização parece aglutinar todos os povos da Terra numa
só expressão: Coca-Cola. Isso, aparentemente. Porque, pelo menos por enquanto, a
alma de cada povo ainda reflete os caminhos percorridos.
Algumas vezes, esses
caminhos, embora não sejam os mesmos, aproximam culturas diferentes com
formação parecida. É o caso do Brasil e dos Estados Unidos. Em História dos
Estados Unidos, um livro organizado por historiadores reconhecidos, como o
professor de História Leandro Karnal, da Unicamp, um olhar inovador foi lançado
sobre a formação dos Estados Unidos e do Brasil, respectivamente. Ao contrário
do que aprendemos na escola, a colonização inglesa não teve nada de pragmático;
em alguns pontos, os autores referem-se à colonização portuguesa como mais
organizada, e, portanto, com mais chances para tornar a colônia rica e
imperial. A primeira universidade da América foi fundada por espanhóis enquanto
os ingleses enfrentavam dificuldades nas Treze Colônias. Como a história
terminou, são outros quinhentos, como todo mundo sabe.
A Inglaterra é uma ilha –
à margem da Europa, embora tenha participado de todos os acontecimentos
históricos importantes do continente. Portugal é um país exilado na Europa. Os
ingleses ajudaram a fuga de Dom João VI para o Brasil. Nos processos
colonizadores, os ingleses escravizaram os negros e dizimaram uma boa parte dos
índios. O mesmo aconteceu no Brasil. Negros e índios foram escravizados. Mas,
nos dois casos, as crianças, americanas e brasileiras, brincaram a mesma
brincadeira de índio: com machadinha e dança da chuva.
A cultura americana não
apenas encantou os jovens dos anos 50 e 60, especialmente a dos filmes
hollywoodianos, como também se compactuou com a cultura brasileira, e ambas
criaram um estereótipo etno-histórico a favor da negação de uma minoria. Dessa maneira, o diálogo entre as duas
culturas é intenso, embora não concomitante na maior parte das vezes.
Artigo publicado também no site Página Cultural
Milton
de Oliveira Cardoso Junior, baiano da Chapada Diamantina, é graduado em Letras,
Língua Portuguesa e Suas Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia,
Uneb, Campus XVI, Irecê, Bahia. Surdo desde os dez anos, em consequência de
meningite, tem dificuldade em aprender Libras, talvez pelo fato de ter começado
a ler muito cedo. Entre os seus escritores preferidos, encontram-se Thomas Mann
e Guimarães Rosa.
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