por Marcelo Spalding
Um livro mal compreendido.
E, por extensão, mal resenhado. Fruto de uma saudável megalomania de um dos
grandes escritores contemporâneos – literalmente grande –, A Milésima Segunda
Noite já foi merecedor dos mais variados adjetivos e superlativos, esteve
enquadrado como grande reportagem, livro de pensamentos, livro de memórias,
almanaque, espécie de Bíblia, quando não passa de mais uma obra de micronarrativas
no Brasil.
Fausto Wolff pega carona
numa estética lançada oficialmente por Dalton Trevisan em 1994 (Ah, é?), e
muito explorada na viragem de milênio (Bonassi com Passaporte, Ruffatto com
Eles eram muitos cavalos, Noll com Mínimos, Múltiplos, Comuns, Freire com sua
antologia Os Cem Menores Contos do Século). São obras de narrativas mínimas –
não confundir com minimalistas – de no máximo 300 palavras, enquadrando-se no
que os norte-americanos chamam de micro-fiction. Pois é dentro deste formato
que Wolff conta a história do mundo em mil e dois capítulos (na verdade mil e
um), indo do passado paleolítico ao futuro 2090, da China ao subúrbio
brasileiro, de Adão a FHC, nunca esquecendo seu espaço e tempo reais, o Rio de
Janeiro do século XX.
O que Fausto faz de
razoavelmente novo (Rufatto usara artifício semelhante para traçar um painel de
um dia da cidade de São Paulo em Eles eram muitos cavalos), e faz mais para não
cansar o leitor do que para confundir a crítica ou parecer revolucionário, é
intercalar narrativas (com tempos, personagens, narradores e onisciências
diversos) com pensamentos, trechos de livros seus, artigos opinativos, breves e
geniais biografias, breves e geniais ensaios, resenhas, verbetes. Mas isso tudo
como acessório, pois as narrativas ocupam em torno de 60% dos textos. E é bem
possível que num futuro não distante algum editor compile algumas de suas
melhores histórias para a edição de bolso e a batize de As Melhores Noites de
Fausto. Nela o texto de número 687 estaria em lugar de destaque.
Como eu já disse, morreram
vinte e dois prisioneiros de guerra americanos em Hiroshima. O vigésimo
terceiro, que sobreviveu, foi linchado pela multidão enfurecida. Os japoneses
caminhavam como zumbis procurando seus entes queridos entre as ruínas e nuvens
de fumaça cancerígena. Surpreendentemente, os sobreviventes sentiram pouca dor.
Um escritor disse que foi como se o grande terror do desconhecido houvesse
cancelado o terror do sofrimento. Nus ou com roupas em frangalhos, não sabiam
para onde se dirigir, pois todas as placas haviam desaparecido. Era impossível
dizer quem era homem e quem era mulher. Os que saíram de casa vestindo roupas
brancas apresentavam menos ferimentos do que os demais, uma vez que as cores
escuras tendem a absorver a luz termonuclear. Amigos não se reconheciam, pois
muitos haviam perdido seus rostos. Outros tinham gravada nas faces as
impressões de suas mãos ou de seus narizes. Algumas pessoas perdiam as mãos ao
acenarem pedindo ajuda. Saía fumaça dos ferimentos quando imersos em água.
Outros cem mil japoneses morreriam graças aos ferimentos e à radiação. Até hoje
crianças nascem cancerosas em Hiroshima e Nagazaki. Os filhos das mulheres
grávidas durante o ataque nasceram deformados.
Se o tom é sempre ácido e
crítico, a temática de A Milésima Segunda Noite é ampla como numa conversa de
bar, e o narrador, autêntico homem de bar, complexo como poucas de suas
personagens. Trata-se de um tarado pelo prazer, agnóstico mas desconfiado de
sua própria descrença, apaixonado não assumido por crianças, em especial pela
sobrinha Amanda, e, acima de tudo, de um humanista. Ou existencialista, já que
em Fausto a influência de Sartre é visível, mais até que a de Marx e Engels –
suas declarações de amor pelos livros lembram As palavras, autobiografia do
mestre francês. É natural, portanto, que nesta História do mundo para
sobreviventes, subtítulo do livro escolhido por Fausto, tenham papel de
antagonista a Igreja e seus papas, a Europa e seus Reis, o capitalismo e seus
banqueiros, os Estados Unidos e suas filiais, enquanto como protagonista surgem
crianças, cavalos, filósofos e mulheres, belas mulheres.
Politicamente incorreto
como poucos escritores contemporâneos têm coragem de ser, Fausto questiona a
política de Israel, os movimentos feminista e homossexual, ironiza a grande
mídia e seu jornalismo subserviente, não poupa palavras para definir Bush, FHC,
os banqueiros e políticos em geral, prefere o bandido ao banqueiro e põe suas
personagens para transar o tempo todo. Sim, em Fausto transam todos, transa
Leon Tolstói, transam as rainhas Vitória e Elizabeth, transa Sherlock Holmes,
John Keneddy, Catarina, a Grande, Cleópatra (claro) e até Hans Christian
Andersen. Como se fosse o amor uma receita para os sobreviventes mudarem a
história do mundo.
Talvez este livro, se não
tivesse Noll publicado antes, devesse carregar o epíteto de “um painel
minimalista da criação”. Estaria se definindo melhor do que todas as tentativas
do próprio livro de o fazer. Porque estamos diante de um mosaico de narrativas,
situações, cenários e pensamentos fundamentais para a compreensão da história
do mundo, ou pelo menos da história do mundo sob um ponto de vista. Um ponto de
vista tido como anacrônico por muitos, romântico por alguns, superado por
todos, mas ainda suficiente para resistir mil e duas noites ou mais.
Ainda não conseguem jogar
uma bomba sobre as idéias.
Esse texto foi originalmente publicado no site: http://www.artistasgauchos.com.br/
Marcelo Spalding
é formado em jornalismo e mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS,
professor da Oficina de Criação Literária da Uniritter, editor do portal
Artistas Gaúchos, autor dos livros 'As cinco pontas de uma estrela',
'Vencer em Ilhas Tortas', 'Crianças do Asfalto', 'A Cor do Outro' e
'Minicontos e Muito Menos', membro do grupo Casa Verde e colunista do
Digestivo Cultural. Recebeu o Prêmio AGES Livro do Ano 2008 pelo livro
'Crianças do Asfalto', categoria Não-Ficção, e o Prêmio Açorianos de
Literatura em 2008 pelo portal Artistas Gaúchos. Site: www.marcelospalding.com.
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