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Imagem autor desconhecido |
Monólogos em desencontro
Olhou para as unhas
esmaltadas mais uma vez. Em seguida, colocou na palma fina da mão um pouco do
creme que mantinha sobre a cômoda, concentrando-se na tarefa de esparramá-lo.
Enquanto esfregava os dedos longos, tentava se lembrar onde havia deixado o anel.
— Pronta? — perguntou-lhe
Ernesto.
— Quase. Viu o meu anel?
— Em cima da pia do
banheiro.
A joia de rubi, herdada da
avó, era a predileta de Clarice. O vermelho escuro da pedra, em contraste com
sua pele branca, parecia uma gota de sangue sobre a neve. Tem personalidade,
ela pensou, admirando, mais uma vez, o anel.
— Clarice, você ainda não
está pronta? — perguntou-lhe novamente o marido, dessa vez, impaciente.
Sem lhe dar resposta, ela
fechou-se no closet, temendo que Ernesto percebesse em seu rosto o desprezo que
sentia por ele.
Não, não tinha sido assim
desde o começo. Conheceram-se jovens. E aos jovens é permitido sonhar futuros.
A vida apostara neles uma pule de dez, mas não lhes dera alertas de que seria
na arena do presente que as disputas se dariam.
Amavam-se... Amaram-se...
Essa dúvida não a deixava apaziguar os sentimentos. Precisava saber, ter
certeza de que tudo já se transformara em nada.
Interrompeu os pensamentos
quando percebeu que não conseguia alcançar o fecho do vestido sozinha. Mexeu
levemente no cabelo, ajeitou as alças do sapato e pegou a pequena carteira de
cetim que estava em uma das prateleiras.
— Fecha para mim? — pediu ao
marido.
As mãos dele sobre as suas
costas provocaram-lhe um pequeno arrepio. Virou-se suavemente, a tempo de perceber
que a sensualidade do momento era um engano só seu. Ernesto, cenho franzido
pela irritação do atraso, conferia o relógio como se pudesse fazê-lo reter a
hora.
Havia uma festa esperando
por eles. Ernesto tinha fechado ótimos negócios para a empresa e os sócios
estavam lhe prestando uma homenagem. Como a homenagem do ano anterior, por
causa dos lucros que depositara em suas contas. Ou a de dois anos antes, quando
Ernesto abrira três filiais na Europa. Ernesto, Ernesto, Ernesto! Havia uma festa esperando por Ernesto! E ela?
Impecável, perfumada, sorridente, invejada, ela era apenas a mulher de Ernesto.
Onde está Clarice? — cantarolava uma vozinha zombeteira em seus ouvidos. —
Clarice foi embora...
— Esqueci a minha estola —
disse, voltando ao closet.
Sempre a mesma coisa. Uma
estola, um brinco, um espelhinho de bolsa, uma desculpa qualquer. O suficiente
para voltar e engolir rapidamente, sem água, o “comprimido da alegria”, como se
referia ao calmante.
No carro, sem se falarem,
como lhes era habitual, Clarice pensava em quando fora, afinal, a última vez
que tinham se amado. Faziam sexo regularmente, talvez três ou quatro vezes por
semana. Mas ela queria amar.
Em breve, chegariam à casa
dos amigos, e aí sim ele conversaria com ela. Falariam de viagens, do carro
novo que ele lhe presenteara, da caixa umedecedora repleta de Davidoffs que
recebera da filial da República Dominicana, dos planos para as festas de fim de
ano. Depois, num instante em que ela estivesse distraída, ele fugiria para uma
roda de homens, na biblioteca ou em volta da piscina, onde retiraria a máscara
e falaria de negócios.
Onde está Ernesto? — a
vozinha voltava, atrevida. — Ernesto foi embora... Segurando mais uma taça de
champanha, a quinta desde que tinha chegado, Clarice afastou-se do grupo
buliçoso. Do outro lado da sala imensa, subiu disfarçadamente a escada para o
andar superior, onde sabia que uma sacada fresca e quieta estaria aberta. De
lá, podia ver Ernesto conversando com os sócios no jardim. Ele sorria e contava
alguma coisa que prendia a atenção de todos. Como acontecia entre ela e ele
quando ainda confiavam um no outro.
Faz quantos anos que Ernesto
não conversa comigo? — pensou. — Que não pede a minha opinião para nenhum
assunto sério?
Um ardor em sua mão
obrigou-a a voltar os olhos para o corte provocado pela taça quebrada entre os
seus dedos. Que se dane você, Ernesto! — sentenciou, enquanto procurava um
banheiro para cuidar do ferimento.
Naquela noite, em casa,
Ernesto lhe disse que ainda tinha trabalho a fazer e retirou-se para o
escritório instalado no térreo. No quarto, sonolenta, Clarice pensou que talvez
já tivesse passado da hora de separar-se dele. Estava farta do provedor que a
presenteava com joias cada vez mais caras — dadas somente em ocasiões
convencionais —, que a comprava com cartões de crédito ilimitados, que lhe dava
sexo sem fantasias, sem amor, sem sentido. Ela o odiava. Tinha nojo dele.
Queria ser adulada, queria receber um presente roubado do jardim, queria ganhar
um abraço apertado. Amanhã... Amanhã eu me livro disso tudo — pensou,
entregando-se ao sono.
Ernesto desligou o
computador, apagou a luz, mas não saiu do escritório. Preparou e acendeu um
charuto, deixando que o cheiro forte do tabaco o impregnasse. No minibar,
serviu-se de uma dose de uísque sem gelo, sentando-se em seguida na grande
cadeira de espaldar alto que ficava próxima à janela.
Clarice já devia estar
dormindo. Não era preciso mais que uma dose para garantir que não a encontraria
acordada. E ele poderia dormir sem ter vontade de tocá-la. Toda noite, esperava
que ela lhe dissesse alguma coisa. Que lhe perguntasse sobre o seu trabalho,
que conversasse sobre política, ecologia, música, qualquer tema! Esperava que
ela lhe pedisse um beijo, que se encostasse a ele para dormir. Estava cansado
de Clarice. Dos seus silêncios repletos de frases retidas. Estava farto das
acusações que lia em seus olhos, do desprezo que ela lhe entregava em cada
gesto ou fingimento. Antes, não era assim entre eles.
Os anos consumiram a Clarice
que ele amava. Ou tinha amado. A Clarice que ria sem conveniência, que dizia o
que pensava, que chorava de alegria. Os cabelos curtos e as roupas recatadas
daquela mulher que se deitava agora ao seu lado não pertenciam à jovem decidida
que o arrancava dos estudos para fazer amor com ele até a exaustão. Mas teriam
sido mesmo os anos? Ele também se sentia diferente. Sem paciência, irritadiço,
confuso, entediado. A gente muda mesmo sem vontade — disse a si mesmo.
Tinha se conformado com a
distância entre Clarice e ele. Imaginava que, com o tempo, as coisas voltariam
a ser como antes. Não voltaram.
Nem percebeu quando a
distância entre a vontade e a possibilidade ficou maior que o pulo que suas
pernas conseguiriam dar para saltar tanto abismo. Havia, nesse abismo, os
comprimidos que Clarice escondia dele no closet, as taças de champanha sempre
cheias, os arrepios de repulsa que o corpo dela fabricava a um simples toque
das mãos dele. E havia uma ausência arrasadora. O único sinal de que ainda
existia uma Clarice real por trás daquela mulher de cera era o anel de rubi que
a avó lhe dera ainda mocinha, e que ela nunca deixava de usar. Um lugar para
onde ir, para onde voltar.
Ernesto recostou-se na
cadeira, como se o abraço do objeto pudesse compensá-lo por tanta solidão.
Sentia-se frágil pela falta de Clarice. Sentia-se esvaziado. Não lhe bastava
mais o sexo que fazia nela, mas não com ela. Como não lhe bastava separar-se
dela para deixar de sofrer. Clarice era o lugar para onde ele queria voltar.
Amanhã... Amanhã eu dou um
jeito nisso tudo, decidiu, adormecendo ali mesmo.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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