Van Gogh e Rimbaud: os olhos
do infinito
por Alexandre Coslei
Artigo publicado no site Obvious
Vincent Van Gogh e Arthur
Rimbaud foram contemporâneos. Como artistas, compartilharam da fertilidade
criativa que pulsava na segunda metade do século 19. Como personagens,
espelharam uma existência decadente e desenvolveram, cada um a sua maneira,
obras que subverteram os padrões da época. Gênios degenerados e inconsoláveis.
Arthur Rimbaud faz parte
daquela galeria legendária de artistas que agregou ao brilho da sua obra o
aspecto mítico do subversivo. De poeta marginal ao errante em terras africanas.
O vate de inquietantes olhos azuis que arruinou a reputação de Verlaine ou que
apenas serviu como detonador da autodestruição do mestre decadente. Talvez,
para Rimbaud, a poesia tivesse tomado ares de um caminho bolorento e apático. O
enfant terrible convertido ao catolicismo no leito de morte.
Van Gogh encontrou no
suicídio o passaporte que rompeu com a servidão imposta pela arte para preservar
sua saúde mental, Rimbaud renunciou ao poeta para mergulhar na aventura do
desconhecido e nas empreitadas comerciais pelos desertos da Somália e Etiópia.
Dois gumes da mesma faca, o talento se revelando como a vocação do trágico.
O holandês Van Gogh e o
francês Rimbaud, duas linhas soltas que atraem o nosso mórbido fascínio. Um
abraçou a pintura com o extremo da paixão, erguendo uma ponte frágil entre a
loucura e a sanidade. O outro rejeitou a própria poesia com o mesmo asco com
que repudiou Verlaine, um obstáculo entre ele e a sua sina de se sentir vivo.
Não surpreende que os dois ícones tenham sido contemporâneos e morrido, ambos,
aos 37 anos.
Um pintor e um poeta, ambos
batizados pelo vício do absinto, ébrios da desolação em busca de consolo. Van Gogh
fazia da arte a alienação para a sua alma compulsiva, um emplastro para a
loucura sempre à espreita. Rimbaud renegou a arte para afirmar sua vontade de
viver e até enriquecer, seguindo as correntes vertiginosas da adrenalina.
“A vida está em outro lugar”
– escreve o jovem Rimbaud em seu diário, antes de deixar a casa da mãe.
“Dizem que na pintura não se
deve procurar por nada, nem nada esperar, além de um bom quadro... Talvez seja
verdade, e por que recusar-se a aceitar o possível, sobretudo se assim fazendo
enganamos a doença?” – Assim, Van Gogh divaga em uma das cartas ao irmão Theo.
A linha tênue e comum entre
os dois é a angústia do inconformismo, um desejo urgente de identificar o
sentido de existir. Rimbaud e Van Gogh são personagens que refletem as duas
faces cruciais da nossa humanidade: o poeta quer agarrar a loucura para se sentir
vivo, o pintor quer escapar dela para continuar vivo.
Pelas cores ou pelas
palavras, vagando por desertos selvagens ou por quartos de hospícios,
rejeitando ou idolatrando qualquer manifestação estética, a poesia persiste nos
dois e é a poesia que constrói neles o folclore e a tragédia que os
perpetuaram.
Van Gogh soma inusitado
valor aos seus quadros pelos relatos fartos e deslumbrantes que nos legou
através das correspondências com seu irmão Theo. Já Rimbaud nos seduz pela
imensa lacuna que marca a sua vida após abandonar a poesia e se tornar um
aventureiro numa jornada de poucos registros e muitas especulações. Van Gogh
disseca-se, Rimbaud ausenta-se.
Qualquer biografia que cite
esses dois artistas irá salientar uma interseção evidenciada na instabilidade
do comportamento e na conturbada incapacidade de convivência social. Muitas
vezes na história se constatou a mais intrigante faceta da genialidade, aquela
que transporta uma caótica desordem emocional para uma obra de perturbadora
harmonia. É nessa categoria de gênios que estão incluídos Vincent Van Gogh e
Arthur Rimbaud.
A perenidade das imagens que
eles usam para decifrar o mundo é uma fonte interminável de encantos.
Rimbaud escreveu: “Ela foi
encontrada / Quem? A eternidade / É o mar misturado ao sol / Minha alma
imortal, / cumpre tua jura / Seja o sol estival / Ou a noite pura. / Pois tu me
liberas / Das humanas quimeras, / Dos anseios vãos! / Tua voas então... / -
Jamais a esperança. / Sem movimento. / Ciência ou paciência, / O suplício é lento
/ Que venha a manhã, / Com as brasas de Satã, / O dever é vosso ardor / Ela foi
encontrada! / Quem? A eternidade. / É o mar misturado ao sol".
Desta forma, Van Gogh
descreve um dos seus quadros para Theo: “Ufa – o ceifeiro está pronto, acho que
é dos que você porá em sua casa – é uma imagem da morte tal como nos fala o
grande livro da natureza – mas o que eu procurei foi aquele “quase sorrindo”. É
todo amarelo, exceto uma linha de colinas violetas, um amarelo pálido e loiro.
Acho engraçado que eu tenha visto assim através das grades de ferro de uma casa
de loucos".
Definitivamente, num
universo que se nutre da obviedade das coisas, o que transforma homens em
lendas são os olhos do infinito.
Alexandre Coslei é
jornalista e escritor...
Assinar:
Postar comentários
(
Atom
)
Nenhum comentário
Postar um comentário