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Pablo Picasso, "Arlequim sentado" |
A Constituição de Tal
Domingo, oito da noite. Rua
pequena, cidade grande. O tropel de cinco ou seis pares de botas não tem
testemunhas senão a própria vítima. Socos, pontapés, massacre. Um grito de
medo, muitos de impotência. Mais tarde, no leito de um hospital público, não é
a dor que enlouquece o paciente, mas as palavras que estacionaram em seus
ouvidos, como mantras do mal: “Viado! Viado aidético!”. João, José, Manuel,
Raimundo de Tal tem a cabeça rachada em três lugares, ou, para falar no jargão
médico, sofreu traumatismo craniano. Sofre, ainda, da incredulidade de que tudo
tenha mesmo acontecido.
Esse cenário de violência
homofóbica repete-se, dia sim, outro também, nas cidades, nos jornais e na
história dos que apanham por terem opção. A opção de serem o que são. Como a bailarina,
cujos dedos do pé são feios e tortos. Como o mecânico, cujas unhas estão sempre
negras de graxa. Como a freira, cuja fé a faz repelir os homens da Terra para
entregar-se à Trindade dos céus. Opções. Vontades praticadas por prazer,
hábito, necessidade ou fé. Escolhas.
Enquanto isso, no hospital
público, João, José, Manuel, Raimundo de Tal, cidadão, trabalhador, filho de
alguém, irmão de alguém, apalpa a cicatriz que desce pela face. Vidro cortado;
enterrado com sadismo em sua bochecha. Quer entender, também, a cusparada que
levou antes do corte. Porque cuspe é mais que dor, é humilhação. E compreender
a dor de desespero que arde e coça dentro do peito; mais que a cicatriz.
O policial de plantão cumpre
o seu papel. Anota nome, endereço, detalhes e dá a queixa como prestada. Segue
para o próximo caso. Um travesti de programa. Estupro seguido de esfaqueamento.
Ninguém responde por ele. Está morto e o policial com a prancheta se aborrece,
porque preencher sozinho a papelada é tarefa menor. Ele pega bandido. Papel é
coisa de babaca. Mas tem muito crime e poucos homens para cobrir a metrópole,
cada vez maior.
João, José, Manuel, Raimundo
de Tal consegue um advogado. Um doutor que lhe conta a que leis vai recorrer
para colocar atrás das grades os agressores, capturados faz pouco tempo, após
novos ataques a homossexuais. Ele presta atenção às palavras bonitas da
Constituição brasileira. E acredita que, perante a lei, é igual a qualquer
outro homem, protegido do preconceito, da surra, do cuspe na cara. Não sabe
ainda que, no Brasil, a incoerência e o deboche não acontecem pelo texto
ilibado da lei, mas pela prática diária da impunidade, pelo abrandamento das
penas, pela vilania disfarçada em homens de bons modos.
No tribunal, os skinheads são julgados e condenados.
Seis meses depois. Mas João, José, Manuel, Raimundo de Tal não se impressiona
com a morosidade da Justiça, nem com o número de crimes similares de que são
acusados os nazistas de cabeças raspadas sentados perto dele. O que mais lhe
chama a atenção é o juiz que profere a sentença. O juiz que não olha uma única
vez em sua direção, durante o julgamento. Ele sente vergonha, raiva, desprezo
pela homossexualidade de João, José, Manuel, Raimundo de Tal. Mas é um homem de
leis. Cumpre o que precisa.
A dor da cicatriz de dentro
continua. É dor de preconceito. Sem previsão de passar.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
2 comentários
Texto forte, inquietante!! Preconceito sofrido por homossexuais, deficientes, pobres... Todos aqueles para quem se olha de canto de olho. Lei bonita no papel, estúpida na prática. E a sensação, que é mais que sensação, de que por mais que se diga "fazer justiça, aquela cicatriz nunca para de coçar. Parabéns, Cinthia, pelo texto de dar nó na garganta!
E assim caminha a humanidade, em círculo vicioso, como costumo dizer. Protesto, denúncia, angústia e impotência, tudo resumido nesse texto sensacional. Ah, Cinthia, que dor!!
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