Fiz questão de escrever todo
o título em maiúscula! Essa é uma homenagem aos tempos áureos, em que a
qualidade da Música Popular Brasileira era fortalecida pela poesia de Chico
Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil.
Sim, poesia, letras
verdadeiramente trabalhadas, a ponto de colocar na boca do público – e eu era
ainda quase uma criança -, um doce-de-palavras, confeitado por frases do tipo
“quero ser a cicatriz risonha e corrosiva, marcada a frio, ferro e fogo, em
carne viva” ou simplesmente “Deus me deu mão de veludo pra fazer carícia, Deus
me deu muita saudade e muita preguiça, Deus me deu perna cumprida e muita
malícia pra correr atrás da bola e fugir da polícia, um dia ainda sou
notícia...” Ou ainda “Como beber dessa bebida amarga, tragar a dor, engolir a
labuta, mesmo calada a boca, resta o peito, silêncio na cidade não se escuta,
de que me vale ser filho da santa, melhor seria ser filho da outra, outra
realidade menos morta, tanta mentira, tanta força bruta”
E o Pai afastou de mim tudo o
mais que não era música de qualidade! Ainda bem que esses dardos de beleza,
lampejos de uma linguagem que se aprende a amar, desde a mais tenra idade,
atingiram pra sempre o meu coração, e me mantiveram nessa senda dos buscadores
ávidos de poesia; nessa comunhão entre letra e
sonoridades, que mais do que embalar corpos nos ritmos da moda, servem
para formar cultural e esteticamente um sujeito.
E hoje, anos depois, indo de
Porto Alegre para a praia, tive a boa ideia de colocar no rádio do carro, o
disco dos Secos Molhados. Evidentemente, um CD, remasterizado, daquela obra que
foi um escândalo em todos os sentidos, desde a capa com as cabeças em pratos de
bolo, na mesa repleta de cebolas, grãos e roscas, até a maquiagem dos
componentes do grupo, ou o figurino, a voz do cantor principal, a sonoridade
rica, rica, riquíssima. Uma verdadeira revolução, principalmente para um
pré-adolescente, que tinha então em 1973 doze anos de idade. Uma verdadeira
celebração da latinidade, da carnavalização, da brasilidade, da
contemporaneidade!
O disco rolando no rádio e a
minha cabeça trabalhando sem cessar! Foi inevitável agradecer o ambiente
cultural em que fui criado: que sorte! Meus pais ouviam (e gostavam!) de Nara
Leão, João Gilberto, Gal Costa, mas também Altemar Dutra, Orlando Silva, Dalva
de Oliveira, Nélson Gonçalves, Pixinguinha.
Uma riqueza de estilos que só
depois eu saberia festejar!
E logo a memória toma todo o
espaço do meu carro, me veste de outros novos tempos e me faz ficar arrepiado,
saudoso, impactado como naqueles idos, com a imagem forte e arrebatadora do
verso de “quem não vacila mesmo derrotado, quem já perdido nunca desespera e
envolto em tempestade, decepado, entre os dentes segura a primavera”.
Caramba, segurar a primavera
entre os dentes e ainda por cima decepado? Era demais! Mexia comigo, revolvia o
poeta que eu sempre haveria de ser! E ainda essa carga toda de surrealismo,
essa atmosfera onírica, que caminha ressentida para o lirismo dolorido dos
versos de uma rosa atômica, que nos convoca: “pensem nas feridas como rosas
cálidas, mas não se esqueçam da rosa da rosa...”. Acho que ali, aprendi a
ironia, o equilíbrio da rosa repugnante balizada pela ternura de protestar de
um jeito mais profundo! Amei aquilo tudo com a força de uma vida inteira que
ainda estava por vir.
Se naquele longínquo 1973 eu
já intuía o modernismo musical daquele disco, hoje só posso gritar de
alegria-revigorada-e-revoltosa, por ter sido assim musicalmente tocado pela
poesia de Cassiano Ricardo, de Vinícius de Moraes, de Manuel Bandeira. Apesar
da sonoridade, às vezes, pra cima, alegre porque coletiva e brasileira, havia o
predomínio de uma rua sem saída, um caminho sem chegada, o alvoroço de
andorinhas gritando, do senhor capitão que iria tirar esse peso do meu coração,
para transformar tudo em uma arte pulsante que abriria para mim as portas do
mundo, porque era preciso ser assim assado!
E tudo isso ali, de volta,
no meio da BR-290! Que vontade de gritar! De cuspir na cara das pessoas a prece
cósmica de Cassiano Ricardo, que reza ainda nos meus ouvidos para “que do bolso
de cada um dos 4, como num teatro, voem pombas (pombas brancas) e amanheça”.
A vida correu pra mim, como
eu corria naquela estrada: rápida demais, envolta nesses fios de “sombra,
silêncio ou espuma, nuvem azul que arrefece”, como João Ricardo ao descrever o
amor.
Foi amor que aprendi nas
primeiras leituras de grandes obras da literatura brasileira, que naquele mesmo
ano tive que ler na 6ª série, na escola.
Mas, o disco da memória, no rádio do aqui e agora anuncia um saldo
positivo de mim mesmo: minha verdadeira abertura para a poesia se deu através
da música e principalmente através do maravilhoso legado dos Secos e Molhados.
A maior ironia é que tenho
ouvido falar demais, nesses últimos dias, em discos de vinil. Há uma trupe que
cultua os antigos aparelhos de som, os toca-discos com braços e agulhas, que
correm pelas ranhuras das bolachas negras, produzindo canto... É essa imagem
que mais me prende e seduz: a agulha que arranha, que desliza nas ranhuras e
que fere profundamente a minha memória, não para causar dor, mas para voltar a
cortar na minha carne os sinais de um tempo que ainda vive em mim. Que poder, o
da memória! São exatamente 42 anos de agulhas diamantadas pelo tempo injetando
nas minhas veias o sangue da história e da arte desde aquele fatídico ano!
Hoje quero carregar no lugar
do músculo cardíaco um LP, fabricado com cera de carnaúba, revestido ainda com
goma-laca, rodando rápido em 78 rotações por minuto. Na velocidade da emoção...
Celso Sisto
é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá
(RJ), ator, arte-educador, crítico de literatura infantil e juvenil,
especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Literatura Brasileira pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da
Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de
histórias espalhados pelo país.
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