ROMANCES E CONTOS – uma
discussão proposta por Ali Smith
Para fins didáticos,
imaginemos um sujeito que passou parte de sua vida lendo sobre teoria da
literatura. Claro, na linha divisória entre a realidade e a ficção, ele não
entendeu muitas coisas – e nunca vai entender –, seja porque estão além do seu
alcance, seja porque são bobagens. Mas, durante uma fração do tempo, enquanto
estudava naqueles livros complicados, houve diversão. Não muito. Um pouco. O
aceitável para projetar uma linha no horizonte. E isso significa que foram
superadas as dificuldades iniciais, secundárias e terciárias encontradas nos
livros de Edward Morgan Forster, Erich Averbach, Jean Pouillon e Terry
Eagleton. Também expressa o instinto de sobrevivência de quem atravessou (a
nado!) o oceano revoltoso que abrange os textos de Georg Lukács, Tzvetan
Todorov e Gerard Genette. Pensando bem, nem o velho e bom Massaud Moisés
consegue diminuir os obstáculos. A teoria bruta não é (nunca foi, nunca será)
exatamente o mesmo que tomar chá com torradas no final da tarde. Mais do que
coragem, o sujeito que resolve seguir pelos caminhos da literatura precisa
estar preparado para superar uma série de ameaças e riscos. Em compensação,
sempre há a possibilidade (única!) de não conseguir ganhar o suficiente para
pagar o aluguel. E, claro, não é possível descartar a hipótese (bastante
plausível) da loucura.
Trocando em miúdos, esse
sujeito se imagina como o portador de uma pequena bagagem intelectual, o
suficiente para superar os rigores de alguns invernos e transmitir o
conhecimento para os alunos do curso de letras, aves raras em um mundo em
decomposição intelectual, política e econômica (não necessariamente nessa
ordem).
O problema é que, em um dia
qualquer, ele precisa trabalhar com algo inesperado. A famosa pedra no meio do
caminho encontra a sua mais completa tradução em uma opinião ainda não
codificada. Ele, que sempre (sempre é um exagero, digamos, que algumas vezes)
confiou nos livros para obter respostas que não dependem da prática empírica,
ficou estarrecido. Aquilo estava completamente fora de qualquer parâmetro ao
seu alcance.
Em Um Conto Real (incluído
no livro A Primeira Pessoa, da escocesa Ali Smith), dois personagens estão
conversando. Um daqueles diálogos somente possíveis entre amigos. Bobagens
entre camaradas. Ou um pouco mais do que isso. O mais jovem, talvez tentando
impressionar o mais velho, defende uma tese sobre as diferenças que existem
entre o romance e o conto. Evidentemente, não se trata de nenhuma dessas
proposições acadêmicas sobre complexidades na carpintaria narrativa, narradores
múltiplos, número de personagens ou quantidade de páginas. Esse preciosismo não
faz parte do discurso. Sem preocupação com escrúpulos derivados do
politicamente correto, afirma que o romance é uma puta velha e flácida. E
completa o raciocínio assegurando que essa estrutura narrativa [tem] lá a sua
serventia, [é] espaçosa, quentinha e conhecida (...) mas a bem da verdade [é]
meio frouxa e larga demais. Em relação ao conto, observa que é uma deusa leve,
uma ninfa magrinha, dessas que poucos conseguem dominar e que, por isso, ainda
está em boa forma.
Nenhum livro fornece
ensinamentos dessa categoria. Quer dizer, poucos têm a ousadia de empregar
metáforas que misturam informalidade e sacanagem em doses capazes de fornecer
embriaguez e dor de cabeça na mesma proporção. Diante do poder transubstancial
das palavras, que sugerem diversos níveis de subversão intelectual, comparar o
romance e o conto com imagens femininas constitui uma forma inusitada de
corromper o pensamento. A pornografia e o erotismo, como alertava o Marquês de
Sade, no século XVIII, fazem parte do imaginário humano – mesmo que muita gente
tente negar essa obviedade. Em outras palavras, colocando a literatura no
proscênio, cabe lembrar que a narrativa (comportada ou não) precisa andar de
mãos dadas com o discurso revolucionário. Além disso, a trama textual costuma
brincar de esconde-esconde com o autêntico e o simulacro, embaralhando os fios
narrativos, despertando brasas adormecidas e apagando fogos de palha. E, mais
importante, renovando a linguagem. Ao lado das imagens inesperadas, das
metáforas criativas e da simplicidade narrativa, os lugares-comuns, os clichês
e os chavões adquirem súbita e renovada importância, pois se transformam (para
o bem, para o mal) em ferramentas de comunicação.
Uma página depois, um
terceiro personagem da Ali Smith acrescenta um pouco mais de sabor ao debate,
Um conto é como uma ninfomaníaca porque os dois gostam de ficar com todo mundo
– ou entrar em um monte de antologias – mas nem um nem outro aceitam dinheiro
em troca do prazer.
Difícil ficar impassível
diante dessa exposição crua, perigosamente próxima da realidade concreta do
leitor. A teoria costuma se afastar desse tipo de coloquialismo. Linguagem é
poder. E isso significa que – historicamente – o conhecimento é controlado
pelos "iniciados”. Transparência e inteligibilidade não fazem parte do
pacote. No mesmo tom, a democracia deve ser evitada. Ou não. Depende da
circunstância e da oportunidade. Talvez mais da segunda do que da primeira.
A analogia entre romance e
conto, prostitutas e ninfas, mais do que um escândalo reflexivo ou uma
brincadeira estranha com o leitor, produz um curto-circuito mental. Tanto que a
narradora do conto da Ali Smith não consegue se controlar e faz um comentário
exemplar, Eu fiquei imaginando, à toa, quantos dos livros da minha casa eram
comíveis e o quanto eles seriam bons de cama. Sem precisar enumerar
preferências ou graus de safadeza, qualquer amante (!!!) da literatura, em
algum momento, imaginou algumas tolices similares. Ler é buscar o prazer –
incessantemente.
Ao mesmo tempo, sem querer
entrar no mérito da tese defendida pelo personagem mais jovem do conto da Ali
Smith, como é que alguém pode considerar como meio frouxa e larga demais a
estrutura narrativa de romances como O Jogo da Amarelinha (Júlio Cortázar), Se
Um Viajante Numa Noite de Inverno (Ítalo Calvino), Grande Sertões: Veredas
(João Guimarães Rosa) e Avalovara (Osman Lins)? No mesmo tom, dezenas de contos
se caracterizam pela mesmice de linguagem e pela repetição temática – muito
semelhantes com aquelas moças que ficam “rodando a bolsinha” nas esquinas da
vida.
Para concluir, cabe dizer
que o tal sujeito, professor de literatura, está recomendando para amigos,
alunos e demais interessados o conto da Ali Smith. Em um mundo em que a
literatura se transformou em uma disciplina descartável, ele – pateticamente –
se esforça para dividir o conhecimento.
Raul J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”.
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