Paixão pela morte
Quando descobriu a morte,
Amélia se apaixonou. Não havia coisa mais fascinante do que percorrer as
sepulturas dia de finados. A notícia de que alguém havia morrido era prato cheio
para o desenrolar dos mistérios que não acabavam nunca! Segundo aprendera em casa e no catecismo da
Igreja de São João, todos os justos iriam para a morada do Pai. E os não justos
iriam para o inferno. Tudo nos conformes do eterno, inclusive as criancinhas
pagãs, não batizadas, que iriam morar no limbo, onde a menina imaginava um
monte de anjinhos prisioneiros, que nada sentiam. Não era possível! Tinha
alguma coisa mais do outro lado... Muito mais!
Não era só isso. Encantava-se ao ver a pessoa
sem vida, ali no caixão, inerte, e “a alma vagando pelo éter...” conforme poesia escrita por seu tio Astolfo
no mirante da mansão onde morava. A tal poesia repousava em cima da
escrivaninha do tio, tão inerte quanto os defuntos que a mesma evocava. A alma da poesia se espalhava pela casa como
o cheiro dos jasmins que vinham do jardim.
Palavras não escritas, mas bem entendidas por ela. E sabe Deus quantos espíritos a inspiraram... O tio era também obcecado pela morte! Por
isso lhe atraía subir as escadas do sótão para visitar seus aposentos, quando
sentia a força do mistério pairando no ar...
Coisa boa era participar de
um velório, mas incomodava um pouco ver as pessoas chorando em volta do
caixão. Uma vez teve inveja de crianças
vestidas de luto porque o pai havia morrido! Era fascinante olhar para os
meninos com roupas pretas, com tão pouca idade... Dizer na Escola que perderam
o pai devia ser muito bom! Era como se
fossem promovidos a heróis! – Tão
pequenos e órfãos de pai, diziam as pessoas. Na certa seriam mais paparicados
pelos professores e colegas. Isso naquela década de trinta, quando a viúva se
vestia de preto e todos os filhos a acompanhavam, exceto aquele que tinha menos
de um ano, vestido de camisolinha branca.
Amélia adorava passear no cemitério com o tio,
que mais se parecia a uma sombra silenciosa, caminhando a seu lado. Iam lendo
as inscrições nos túmulos: nascido em
1870 e falecido em 1920. Fazia então, a contagem nos dedinhos para ver com que
idade a pessoa fora “ceifada com violência pelo tempo”, segundo outra frase da
poesia do tio Astolfo. Versos aqueles que não saíam de sua cabeça... Em algumas sepulturas havia foto de
falecidos. A mulher ali enterrada, com um meigo sorriso, fora “ceifada” aos 50
anos... Quase velha, pensava. Havia fotos de homens que pareciam olhar para ela
com ar de reprovação. Era de dar medo! Alguns sepulcros estavam abandonados. O
capim crescia ao redor e as lápides ficavam cheias de terra, na certa trazida
pelas tempestades, imaginava. Porque era muita terra... Quase não dava para ler
a inscrição do jazigo. Devia acontecer o mesmo com as lembranças da família,
dos amigos... As lembranças eram varridas da memória dos parentes e amigos que
viveram a seu lado. Ou o tempo havia
carregado todos eles... Era fascinante também aquele abandono... e a tristeza
morna que sentia.
Quer ver que por isso Deus nada nos revela
do que ocorre do lado de lá, refletiu silenciosamente. Deve ser para não tirar
a graça da surpresa. Mas que surpresa?
Dá medo! Sentiu arrepio.
Enterro de recém-nascido
então era muito, muito bonito! Aquele caixãozinho branco de “anjinho” como era
chamada a criança morta. – Vai direto pro céu, diziam... Se for batizada...
Um dia foi ao encontro das
coleguinhas do colégio de freiras e falou para as meninas sentadas em círculo,
comendo suas merendas: - Vou morrer aos 15 anos! - Como? Indagou uma das
meninas. - O santo, que está à direita do altar me falou, foi afirmando. Uma
das meninas, a mais amiga, chorou. Ela então, ficou muito feliz por se sentir
querida. Morrer aos 15 anos era o máximo! Deitada no caixão com um vestido
branco de virgem, enfeitada por lírios também brancos e uma coroa de rosas na
cabeça. Pálida, com seus cabelos negros ornando o rosto jovem, com olhos
fechados abaixo dos longos cílios também negros... Os adultos se sentindo
culpados e o grande amor de sua vida debulhado em lágrimas... Amélia havia
visto a foto de Ofélia, de Hamlet, no quarto do tio. Estava tão linda, morta no
lago... Só que loira.
O único corpo de falecido
que a menina não almejava ver era do (a) suicida. Não queria saber de quem já
tinha endereço certo depois que deixasse o corpo: o inferno! Como dizia o
relógio do demônio com os ponteiros parados à meia-noite, onde estava
escrito: - Nunca mais! Havia visto o desenho a nanquim num grande
livro no quarto do tio Astolfo.
Rejeitava essa ideia absurda de condenação eterna, mas pelo sim pelo
não, melhor deixar pra lá... Não seria bom visitar o corpo de quem havia
cometido tal sacrilégio: o de querer dar fim à vida. Na dúvida, melhor não ver.
E foram muitas e muitas
divagações precoces da menina sobre as pessoas que partiam para o além... Mas o mistério maior estava no que teria feito
Amélia apaixonar-se pela morte.
Maria J. Fortuna - Nasceu em
São Luís, Capital do Estado do Maranhão. Escolhi Serviço Social como profissão.
Com toda esta incursão no mundo das artes, descobri que não podia viver longe
desse cenário. A literatura havia brotado cedo. Desde menina, sou fascinada
pela palavra. Ingressei na REBRA, onde
recebi incentivo e divulgação do meu trabalho e resgatei alguns textos que
foram escritos no desenrolar da minha existência, aos quais não dei muito valor
na época em que foram produzidos. Recomecei a escrever poesias, crônicas e
livros infanto-juvenis. Publiquei cinco obras infanto-juvenis, ao longo dos
últimos anos: O menino do velocípede, A incrível estória de amor de Mimo e Dedé
, ilustrados pela autora, ambos esgotados. O anjinho que queria ser gente, que
está na 2ª edição e O pardalzinho desconfiado, com ilustrações de Josias
Marinho. Os dois últimos pela Mazza Edições de Belo Horizonte. Em 2008, foi
lançada em Portugal outra obra de minha autoria por essa Editora:A sementinha
que não queria brotar, com ilustrações de Regina Miranda. Este livro foi
adotado pela Prefeitura de Belo Horizonte para as crianças da rede escolar.
Participei de duas Antologias a convite da Editora Rosane Zanini: "A
cidade em nós" - em três línguas (2010)," Um dia em minha
cidade"(2012). Ambas com crônica. Neste último ano, participei da
Antologia: "L´indiscutable talento des Écrivaines Brésiliennes" pela
REBRA, com poesia.
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